O Brasil tem uma normatividade jurídica perfeita no que diz respeito ao processo eleitoral. Mas os ataques do presidente às urnas eletrônicas colocam a votação em um nível de incerteza

Leonardo Avritzer*

Publicado no Nexo

 

Nas democracias consolidadas, existem eleições que são mais importantes e eleições que são secundárias e, frequentemente, marcadas pelo baixo comparecimento e pelo pouco interesse do eleitor. Nas democracias em consolidação – ou, por que não dizer, em desconsolidação, como parece ser o caso brasileiro –, eleições são oportunidades centrais para correções de rumo por parte da opinião pública. Não hesito em afirmar que a eleição de 2022 é a mais importante da história do Brasil desde que eleições presidenciais diretas e secretas (com sufrágio incluindo as mulheres) tiveram lugar em 1945. 

Enumero o que está em jogo: a soberania eleitoral, o fim de uma política de agressão e violência contra as mulheres patrocinada pelo Estado, o controle da violência e de um processo de armamento da população, o retorno de uma política de controle do desmatamento da Amazônia, o retorno de uma política de produção do orçamento com transparência, o retorno de uma relação entre orçamento e políticas públicas e o fim das agressões a todas as instituições contra majoritárias, em especial, o Supremo Tribunal Federal. 

Não é pouca coisa. E, portanto, não é pouca coisa o que pretendemos observar. Observação eleitoral pode ser um ato com diferentes configurações. Este Observatório, ligado ao INCT IDDC (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação), já realizou atividades acadêmicas de observação com o objetivo principal de ajudar o eleitor a entender os processos envolvidos na decisão do voto por meio da apresentação de dados que ajudem na compreensão de padrões eleitorais anteriores. E também trabalhamos na contextualização das disputas políticas nacionais e regionais. 

Com esses objetivos, realizamos uma ampla pesquisa de opinião pública nos anos eleitorais que ganhou destaque na cobertura do jornal O Globo, em sua nova seção, Pulso. Nesta edição 2022 do Observatório das Eleições, continuamos com as mesmas intenções, agora impulsionadas pelo reconhecimento de que vivemos uma eleição completamente atípica, que ocorre num cenário de incerteza completa no campo jurídico e nas redes sociais. Permitam-me elaborar os dois aspectos.

O Brasil tem uma normatividade jurídica perfeita no que diz respeito às eleições. Diferentemente dos Estados Unidos, que não têm uma autoridade eleitoral e têm um processo eleitoral determinado por legislações estaduais sobre o voto, o Brasil conta com o Tribunal Superior Eleitoral e um dia unificado de eleição, seguido por um método de apuração eletrônico consagrado nas últimas décadas. Ainda assim, não podemos negar que os ataques do presidente às urnas eletrônicas, hoje associados a fortes críticas dos mais altos dirigentes das Forças Armadas ao processo de apuração, colocam a eleição em um nível de incerteza. Ou seja, essa eleição irá transcorrer no campo de duas disputas: a de dois candidatos a presidente e a disputa entre o presidente e o TSE acerca da produção de um resultado eleitoral legítimo e aceito pelo conjunto da população. As redes sociais serão o campo por excelência desse embate, no qual o presidente deu os primeiros passos na sua reunião com os embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho. 

Naquele momento, ele antecipou a tática que provavelmente terá forte repercussão nos próximos dois meses: lançar sem provas a desconfiança em relação ao processo eleitoral e tentar envolver diversos atores no chancelamento dessa desconfiança, sem reconhecer o resultado a ser proclamado pela autoridade eleitoral, o TSE, no dia 2 de outubro. Esses atores são as Forças Armadas que, diga-se de passagem, estão relutantes em aderir a esse jogo, apesar dos posicionamentos do ministro da Defesa, das polícias militares e de milícias digitais bolsonaristas. Nesse contexto, podemos afirmar sem dúvida que a desinformação será ampla e exigirá um grande trabalho de esclarecimento. Assim, essa eleição envolverá não apenas a produção de um resultado, mas a sua legitimação posterior em diversas arenas. O Observatório das Eleições pretende, portanto, monitorar esse debate, contribuindo com análises para ajudar a esclarecer o público em relação às particularidades do processo de apuração, à legislação vigente e a um conjunto de processos de desinformação predominantes nas redes sociais bolsonaristas.

A partir desse cenário, algumas outras questões parecem adquirir relevância nestas eleições, entre elas a questão ambiental. Antes mesmo do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, a Amazônia e sua preservação já despontavam como agenda contenciosa, dado o desmonte das estruturas de fiscalização do Ibama e os conflitos entre o presidente Jair Bolsonaro e o Inpe (Instituto de Pesquisas Espaciais) que monitora o desmatamento em tempo real. Com o assassinato de Bruno e Dom, esse conflito mudou de patamar, revelando, de fato, uma presença do crime organizado na região que precisa ser contida imediatamente. O bioma amazônico pode estar próximo do ponto de não retorno e uma política de preservação pode se tornar o ponto central da relação entre o Brasil e alguns dos nossos parceiros europeus. O Observatório pretende cobrir a eleição também sob o ponto de vista do meio ambiente, das candidaturas ligadas ao agronegócio e das eleições regionais que podem determinar novas legislaturas.

Vale a pena ainda ressaltar uma outra dimensão central desta eleição, que é a recomposição da representação legislativa. O Brasil tem um Congresso Nacional predominantemente conservador há algumas décadas, mas o Congresso eleito para a legislatura 2018-2022 foi marcado por processos de inflexão política que colocam em risco a governabilidade e a transparência. Algumas mudanças recentemente realizadas por Arthur Lira merecem destaque: o aumento das emendas parlamentares, a introdução da emenda do relator e a existência de um orçamento secreto. Conjuntamente, essas mudanças tornam o ato de governar e executar políticas públicas praticamente impossível. É necessário devolver a execução do orçamento para os ministérios-chave, como Saúde e Educação; sem esse procedimento, implementar essas políticas se tornará impossível. Além disso, a predominância de bancadas conservadoras – como a do boi, a da bala e a da bíblia – torna o processo legislativo difícil para um presidente de esquerda. Essa eleição irá mudar o panorama do Congresso, em virtude de novas regras, como as federações partidárias e a cláusula de desempenho, mas ainda não temos como saber qual será a bancada que o novo presidente irá encarar no Congresso. O Observatório vai discutir essas mudanças e, se possível, apresentar dados inéditos sobre candidaturas estaduais.

Ainda em consideração ao cenário nacional desafiador, mais uma sombra paira sobre o processo eleitoral: a da violência desencadeada por uma eleição marcada pela radicalização dos sentimentos e emoções. As últimas semanas estão sendo marcadas por episódios de violência na campanha política. Depois de situações lamentáveis como o do drone em Uberlândia e o lançamento de fezes no comício do ex-presidente Lula na Cinelândia, tivemos o primeiro morto em Foz do Iguaçu, em um episódio que expressa a disseminação da violência no campo societário. Assim, teremos uma campanha marcada pela radicalização política, pela emoção e pela incerteza provocada por diversos ataques à democracia e ao processo eleitoral.

Nesse contexto, o objetivo do nosso Observatório será também um desafio: informar o eleitor de maneira equilibrada sobre cada uma das dimensões eleitorais, tentando cumprir o papel cívico de gerar informação confiável em meio a uma conjuntura turbulenta na qual esse objetivo parece ter sido secundarizado por muitos. Acreditamos que a disseminação de análise crítica e de esclarecimentos importantes em relação a análises enviesadas contribuirá para o fortalecimento da nossa democracia.

 

Leonardo Avritzer é coordenador do INCT IDDC e do Observatório das Eleições. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT (EUA). Foi representante de área da Capes, diretor da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) e presidente da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política). Autor de vários livros, entre eles “O Pêndulo da Democracia no Brasil” e “Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrátio e Degradação Política”.