Leonardo Avritzer*

Publicado na Carta Capital

No último dia 11 de agosto, uma quinta-feira, milhares de brasileiras e brasileiros se reuniram para fazerem, coletivamente, a leitura de um documento histórico inspirado na importante Carta aos Brasileiros de 1977. E com essa leitura coletiva, marcamos a defesa intransigente e urgente do Estado Democrático de Direito, que vem sendo diuturnamente atacado pelo atual presidente da República do Brasil. 

Para compreendermos a importância desse ato de mobilização,  devemos lembrar que os manifestos de intelectuais têm tido um importante papel na história da política desde que o primeiro manifesto, em relação ao caso Dreyfus, foi feito (o capitão do exército francês, Alfred Dreyfus, foi acusado, em 1894, de entregar documentos secretos aos alemães; ele foi condenado à prisão perpétua por traição e deportado para a Ilha do Diabo). O manifesto “J’Accuse!”, de autoria do escritor francês Émile Zola, em forma de uma carta aberta ao presidente francês, acusava o exército de ter condenado um inocente de maneira falsa e deliberada. Ele foi publicado no jornal parisiense “L’Aurore” e se tornou um acontecimento político, tendo recebido centenas de apoios e ficado conhecido como um manifesto dos intelectuais. Desde então, esses manifestos têm tido um importante papel em conjunturas políticas dramáticas. 

No Brasil, o manifesto do jurista Goffredo da Silva Telles Júnior, lido em 1977, consolidou um espaço de insatisfação com o regime autoritário, a ditadura militar que silenciava o Brasil. Essa insatisfação já existia há algumas décadas, mas era diluída em termos de atores e mobilizações.

Com a Carta aos Brasileiros de 1977, a democratização brasileira se centrou em torno de duas questões: 1) o restabelecimento do Estado Democrático de Direito; e 2) a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Nesse contexto, posteriormente, a Constituição de 1988 veio para cumprir as expectativas dos atores democráticos em relação a mudanças que precisavam ser realizadas no país. Em relação a esse âmbito, podemos destacar, principalmente, três pontos: o estabelecimento de uma tradição forte de direitos civis pela primeira vez em nosso país, o estabelecimento de uma tradição forte de direitos sociais e o estabelecimento de uma tradição de políticas públicas organizadas sistemicamente.

Não é difícil perceber que o presidente Jair Bolsonaro, eleito em 2018, ataca  frontalmente todas as três tradições estabelecidas pela Constituição de 1988. Nesse sentido, é preciso ressaltar que Bolsonaro, desde o momento em que foi eleito deputado federal, já questionava a tradição de direitos. Depois, uma vez eleito presidente da República, o seu governo se tornou notoriamente conhecido por negar direitos sociais da população, seja no caso da Previdência, seja no caso da organização de outras políticas sociais, especialmente relativas a saúde e educação.

Esses elementos do bolsonarismo, que geraram diversos manifestos e que já foram alvos de outras mobilizações de rua em 2021, expressam uma questão interessante trazida à tona neste momento: os manifestos podem ser, simplesmente, hábitos para um conjunto de atores sociais como podem exercer um forte papel agregador em momentos políticos fundamentais. Nesse sentido, o manifesto de 11 de agosto de 2022 parece ter a mesma dimensão do manifesto feito em 11 de agosto de 1977 por Goffredo da Silva Telles Júnior e do manifesto de Émile Zola na França no final do século 19, qual seja: ele é um agregador de atores sociais e de concepções políticas fundamentais capazes de mudar a configuração do jogo político.

Portanto, a carta divulgada em 11 de agosto de 2022 tem um significado especial: ela é capaz de consolidar uma nova aliança para um pacto democrático no Brasil. Setores que, desde 2018 ou antes, estiveram em lados opostos na luta política no Brasil são, hoje, signatários dessa carta – vale a pena mencionar as associações empresariais, em especial Fiesp e Febraban, que fizeram parte do movimento a favor do impeachment e estiveram em lado oposto ao das forças democráticas ao longo de 2018 até 2022. Esses setores começam a perceber o risco que o bolsonarismo representa para a democracia brasileira e também para uma economia de mercado, tal como afirmou recentemente Josué Gomes da Silva, presidente da Fiesp. Neste momento, a mudança de posição dessas instituições expressa o enfraquecimento do campo bolsonarista, que promove sistematicamente o ataque à democracia e que precisa ser derrotado nestas eleições. 

Também chama a atenção, neste cenário emoldurado pelo manifesto, a conjunção de forças bastante díspares e o apoio de instituições que em geral não se manifestam frequentemente em questões políticas e que são signatárias da Carta. São elas: as instituições universitárias, que assinam como instituições – em destaque, USP, Unicamp e Unesp, além da FGV São Paulo e das PUCs (uma delas, a PUC Rio, foi sede principal da leitura do manifesto no Rio de Janeiro). O fato de instituições que não se posicionam regularmente estarem assumindo a linha de frente da defesa democrática deve sinalizar, para os brasileiros, a gravidade da situação atravessada pelo país.

Um segundo elemento importante do manifesto é a junção entre representantes do capital e do trabalho. Mais uma vez, é raro, na recente história do Brasil, que CUT, CGT, Febraban e Fiesp estejam do mesmo lado em um manifesto. Por fim, mais de 100 entidades representativas em todo o Brasil se juntaram na assinatura do manifesto.

Nos próximos dias, e diante de um processo eleitoral bastante dinâmico e “sui generis”, vamos observar como esse manifesto, a leitura da Carta aos Brasileiros e às Brasileiras, reverbera na sociedade. Um ponto relevante a ser destacado já é o eco do manifesto na mídia brasileira, também amplamente apoiadora tanto do impeachment quanto da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 – o Jornal Nacional, por exemplo, dedicou um bloco inteiro da edição de 11 de agosto ao manifesto, mais de trinta minutos. Essa ressonância também indica um reposicionamento de parte da mídia, um fator relevante para o processo eleitoral. 

Manifestos podem ter pouca ou nenhuma repercussão ou serem o ponto de virada de uma trajetória política. A carta de Goffredo da Silva Telles Júnior não somente acelerou a decadência do regime militar como também abriu o espaço para a forma da democratização por meio da convocação de uma Assembleia Constituinte. Hoje, Bolsonaro pisoteia essa Constituição que tanto fez pelos brasileiros. A Carta de 2022, lida na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco,  parece indicar que o fim dos ataques à Constituição pode estar próximo e que os brasileiros estão dispostos a ir às ruas para defendê-la.

*Leonardo Avritzer: Coordenador do INCT IDDC e do Observatório das Eleições. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT – EUA. Foi representante de área da Capes, diretor da Anpocs e presidente da ABCP. Autor de vários livros, entre eles O Pêndulo da Democracia no Brasil e Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrátio e Degradação Política.