Estamos diante de um cenário em que os partidos e forças derrotadas na competição nacional têm a possibilidade de encontrar espaço na política subnacional e manter sua relevância

Por Marta Mendes da Rocha*

Luciana Santana**

Publicado no NEXO

A estrutura federativa do país, com eleições diretas em todos os níveis, abre espaço para que candidatos e partidos se articulem para maximizar seu desempenho eleitoral nos diferentes níveis da política nacional. Isso significa a possibilidade de transferência de capital político entre lideranças e candidatos estaduais e nacionais. 

A importância das lideranças estaduais, por exemplo, fica evidente no esforço dos presidenciáveis em assegurar palanques nos estados como forma de ampliar sua visibilidade e mobilizar eleitores. Há expectativa de que, em 2022, a nacionalização das disputas estaduais seja mais intensa. Levantamentos recentes mostram que o ex-presidente Lula conseguiu articular palanques fortes em estados estratégicos. Bolsonaro também articulou palanques importantes, mas persistem dúvidas se seus aliados se engajarão na campanha de um presidente que amarga os piores índices de aprovação de um chefe de governo em primeiro mandato.

Para além dos efeitos na corrida presidencial, está em jogo na eleição estadual o comando político dos estados e o acesso a posições que permitam aos partidos e políticos intervirem sobre políticas públicas em áreas sensíveis para a população. Os governadores eleitos controlarão orçamentos bilionários, além do poder de nomear aliados para cargos na administração pública. Nas assembleias estaduais, a conquista de uma boa bancada é crucial para o governador eleito assegurar condições de governabilidade. Além disso, o pleito proporcional é importante para grupos minoritários que veem aí melhores possibilidades para a defesa de seus direitos.

Na política subnacional, além das peculiaridades da competição eleitoral, é importante levar em conta a diversidade inter e intrarregional. O Brasil é marcado por grande diversidade demográfica e disparidades socioeconômicas, o que faz com que algumas questões e atores adquiram maior saliência do que outros.

Não é possível, por exemplo, compreender a grande vantagem do PT nos estados do Nordeste sem considerarmos os efeitos das políticas de transferência de renda e outras políticas implementadas nos governos petistas na região voltadas para a população mais vulnerável. O predomínio do catolicismo também explica o menor apoio de Bolsonaro em seus estados.

Por outro lado, no Norte, segunda região mais pobre do país, Bolsonaro obteve vitórias importantes em 2018 e continua forte em 2022, apesar da avaliação negativa do governo entre os eleitores mais pobres. A força do bolsonarismo aqui se explica, em parte, pelos conflitos agrários e disputas envolvendo povos indígenas, ambientalistas, e grupos envolvidos com atividades predatórias (mineração, pesca ilegal e extração ilegal de madeira). A defesa da regularização de terras ocupadas ilegalmente e da expansão do agronegócio nessas regiões ajuda a explicar o apoio de certos grupos ao presidente. Além disso, sendo berço da Assembleia de Deus, conta com uma proporção significativa de evangélicos e estes foram em 2018 e ainda são, segundo as pesquisas, uma das mais importantes bases de sustentação de Bolsonaro.

No Sul e no Centro-Oeste não é de hoje que o PT encontra dificuldades na corrida presidencial e nas disputas estaduais. Na região Sul a centralidade do setor  agropecuário, especialmente no Rio Grande do Sul, e sua capacidade de fazer valer seus interesses na bancada ruralista do Congresso, ajudam a entender a força de Bolsonaro. O perfil da economia do Centro-Oeste também é relevante para entender o apoio consistente a Bolsonaro. Está concentrada aí boa parte da agropecuária, com destaque para a produção de soja, voltada para exportação. Mesmo que alguns setores do agro tenham iniciado um movimento de afastamento em relação ao presidente, ele ainda conta com apoio importante do setor. 

O Sudeste é um palco privilegiado da disputa presidencial pelo fato de concentrar 42% dos eleitores brasileiros. Além do processo de nacionalização das disputas, as questões da agenda estadual também devem ganhar centralidade, como o problema da segurança pública e da letalidade policial no Rio de Janeiro, além da situação fiscal já que o estado, assim como Goiás, encontra-se em RRF (Regime de Recuperação Fiscal (Minas Gerais e Rio Grande do Sul também devem aderir ao RRF).

Em todo o país, o desemprego, o aumento da insegurança alimentar e da fome, a precarização do trabalho, o aumento da população em situação de rua, e a baixa qualidade da educação, devem ocupar um espaço de destaque nos debates, nas eleições estaduais e nacionais. A saúde, que tradicionalmente figura entre as principais preocupações dos brasileiros, ganhou ainda mais relevo durante a pandemia e é provável que o desempenho dos governos estaduais no combate à crise sanitária ocupe um espaço importante na campanha. A questão ambiental, tradicionalmente ausente das campanhas eleitorais no país, deve ganhar mais espaço, devido ao expressivo aumento do desmatamento e outras atividades predatórias na região da Amazônia e do desmonte da política ambiental durante o governo Bolsonaro. É razoável que estes temas adquiram mais importância nos estados que fazem parte da Amazônia Legal, naqueles onde concentra-se a produção de grãos e de gado e nos estados com forte presença da mineração.

Estamos diante de um cenário em queos partidos e forças derrotadas na competição nacional têm a possibilidade de encontrar espaço na política subnacional e manter sua relevância. A pandemia ofereceu um exemplo desta dispersão resultante do federalismo ao opor os governadores e o presidente em relação à qual deveria ser a melhor abordagem diante da emergência sanitária. 

Se por um lado o federalismo aumenta os custos de construção de consensos, ao multiplicar os atores com poder de bloquear decisões, por outro, ele oferece algumas importantes defesas democráticas. Nas eleições deste ano, marcadas por sucessivos ataques de Bolsonaro e de seus aliados ao processo eleitoral brasileiro, a coincidência das eleições estaduais e nacionais pode ser crucial como um dique de contenção. Afinal, não interessa aos candidatos que lideram a disputa e menos ainda aos futuros governadores e governadoras eleitos o levantamento de suspeitas infundadas sobre a lisura das eleições. 

No que se refere às articulação entre candidatos e partidos nas arenas estadual e nacional, alguns elementos que a partir de agora prometem influenciar os rumos da eleição e aos quais devemos prestar atenção são: (1) os efeitos do início do pagamento dos auxílios da PEC 15/2022, apelidada de PEC dos Auxílios, principalmente nas regiões Norte e Nordeste que concentram a maior proporção de beneficiários; (2) a capacidade das candidaturas de Lula e Bolsonaro solucionarem impasses com aliados estaduais e evitarem rachas em suas bases; (3) o nível de engajamento dos aliados estaduais, principalmente os que estão à frente nas pesquisas, nas campanhas dos presidenciáveis, o que pode variar, em parte, em função do item 1; (4) a capacidade dos presidenciáveis transferirem seu capital político para os candidatos a governador. Isso pode ser fundamental para virar o jogo em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, por exemplo.

 

Marta Mendes da Rocha é professora associada do Departamento de Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), onde coordena o Nepol (Núcleo de Estudos sobre Política Local). É doutora em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisadora do CNPq. Foi pesquisadora visitante na Universidade do Texas em Austin (EUA). Webpage: martamrocha.com

Luciana Santana é professora da UFAL (Universidade Federal de Alagoas) e da UFPI (Universidade Federal do Piauí). Mestre e doutora em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período sanduíche na Universidade de Salamanca (Espanha). Líder do grupo de pesquisa Instituições, Comportamento político e Democracia e diretora da regional Nordeste da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política).