Manifesto de 11 de agosto marca uma guinada em defesa da democracia no Brasil

Manifesto de 11 de agosto marca uma guinada em defesa da democracia no Brasil

Leonardo Avritzer*

Publicado na Carta Capital

No último dia 11 de agosto, uma quinta-feira, milhares de brasileiras e brasileiros se reuniram para fazerem, coletivamente, a leitura de um documento histórico inspirado na importante Carta aos Brasileiros de 1977. E com essa leitura coletiva, marcamos a defesa intransigente e urgente do Estado Democrático de Direito, que vem sendo diuturnamente atacado pelo atual presidente da República do Brasil. 

Para compreendermos a importância desse ato de mobilização,  devemos lembrar que os manifestos de intelectuais têm tido um importante papel na história da política desde que o primeiro manifesto, em relação ao caso Dreyfus, foi feito (o capitão do exército francês, Alfred Dreyfus, foi acusado, em 1894, de entregar documentos secretos aos alemães; ele foi condenado à prisão perpétua por traição e deportado para a Ilha do Diabo). O manifesto “J’Accuse!”, de autoria do escritor francês Émile Zola, em forma de uma carta aberta ao presidente francês, acusava o exército de ter condenado um inocente de maneira falsa e deliberada. Ele foi publicado no jornal parisiense “L’Aurore” e se tornou um acontecimento político, tendo recebido centenas de apoios e ficado conhecido como um manifesto dos intelectuais. Desde então, esses manifestos têm tido um importante papel em conjunturas políticas dramáticas. 

No Brasil, o manifesto do jurista Goffredo da Silva Telles Júnior, lido em 1977, consolidou um espaço de insatisfação com o regime autoritário, a ditadura militar que silenciava o Brasil. Essa insatisfação já existia há algumas décadas, mas era diluída em termos de atores e mobilizações.

Com a Carta aos Brasileiros de 1977, a democratização brasileira se centrou em torno de duas questões: 1) o restabelecimento do Estado Democrático de Direito; e 2) a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Nesse contexto, posteriormente, a Constituição de 1988 veio para cumprir as expectativas dos atores democráticos em relação a mudanças que precisavam ser realizadas no país. Em relação a esse âmbito, podemos destacar, principalmente, três pontos: o estabelecimento de uma tradição forte de direitos civis pela primeira vez em nosso país, o estabelecimento de uma tradição forte de direitos sociais e o estabelecimento de uma tradição de políticas públicas organizadas sistemicamente.

Não é difícil perceber que o presidente Jair Bolsonaro, eleito em 2018, ataca  frontalmente todas as três tradições estabelecidas pela Constituição de 1988. Nesse sentido, é preciso ressaltar que Bolsonaro, desde o momento em que foi eleito deputado federal, já questionava a tradição de direitos. Depois, uma vez eleito presidente da República, o seu governo se tornou notoriamente conhecido por negar direitos sociais da população, seja no caso da Previdência, seja no caso da organização de outras políticas sociais, especialmente relativas a saúde e educação.

Esses elementos do bolsonarismo, que geraram diversos manifestos e que já foram alvos de outras mobilizações de rua em 2021, expressam uma questão interessante trazida à tona neste momento: os manifestos podem ser, simplesmente, hábitos para um conjunto de atores sociais como podem exercer um forte papel agregador em momentos políticos fundamentais. Nesse sentido, o manifesto de 11 de agosto de 2022 parece ter a mesma dimensão do manifesto feito em 11 de agosto de 1977 por Goffredo da Silva Telles Júnior e do manifesto de Émile Zola na França no final do século 19, qual seja: ele é um agregador de atores sociais e de concepções políticas fundamentais capazes de mudar a configuração do jogo político.

Portanto, a carta divulgada em 11 de agosto de 2022 tem um significado especial: ela é capaz de consolidar uma nova aliança para um pacto democrático no Brasil. Setores que, desde 2018 ou antes, estiveram em lados opostos na luta política no Brasil são, hoje, signatários dessa carta – vale a pena mencionar as associações empresariais, em especial Fiesp e Febraban, que fizeram parte do movimento a favor do impeachment e estiveram em lado oposto ao das forças democráticas ao longo de 2018 até 2022. Esses setores começam a perceber o risco que o bolsonarismo representa para a democracia brasileira e também para uma economia de mercado, tal como afirmou recentemente Josué Gomes da Silva, presidente da Fiesp. Neste momento, a mudança de posição dessas instituições expressa o enfraquecimento do campo bolsonarista, que promove sistematicamente o ataque à democracia e que precisa ser derrotado nestas eleições. 

Também chama a atenção, neste cenário emoldurado pelo manifesto, a conjunção de forças bastante díspares e o apoio de instituições que em geral não se manifestam frequentemente em questões políticas e que são signatárias da Carta. São elas: as instituições universitárias, que assinam como instituições – em destaque, USP, Unicamp e Unesp, além da FGV São Paulo e das PUCs (uma delas, a PUC Rio, foi sede principal da leitura do manifesto no Rio de Janeiro). O fato de instituições que não se posicionam regularmente estarem assumindo a linha de frente da defesa democrática deve sinalizar, para os brasileiros, a gravidade da situação atravessada pelo país.

Um segundo elemento importante do manifesto é a junção entre representantes do capital e do trabalho. Mais uma vez, é raro, na recente história do Brasil, que CUT, CGT, Febraban e Fiesp estejam do mesmo lado em um manifesto. Por fim, mais de 100 entidades representativas em todo o Brasil se juntaram na assinatura do manifesto.

Nos próximos dias, e diante de um processo eleitoral bastante dinâmico e “sui generis”, vamos observar como esse manifesto, a leitura da Carta aos Brasileiros e às Brasileiras, reverbera na sociedade. Um ponto relevante a ser destacado já é o eco do manifesto na mídia brasileira, também amplamente apoiadora tanto do impeachment quanto da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 – o Jornal Nacional, por exemplo, dedicou um bloco inteiro da edição de 11 de agosto ao manifesto, mais de trinta minutos. Essa ressonância também indica um reposicionamento de parte da mídia, um fator relevante para o processo eleitoral. 

Manifestos podem ter pouca ou nenhuma repercussão ou serem o ponto de virada de uma trajetória política. A carta de Goffredo da Silva Telles Júnior não somente acelerou a decadência do regime militar como também abriu o espaço para a forma da democratização por meio da convocação de uma Assembleia Constituinte. Hoje, Bolsonaro pisoteia essa Constituição que tanto fez pelos brasileiros. A Carta de 2022, lida na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco,  parece indicar que o fim dos ataques à Constituição pode estar próximo e que os brasileiros estão dispostos a ir às ruas para defendê-la.

*Leonardo Avritzer: Coordenador do INCT IDDC e do Observatório das Eleições. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT – EUA. Foi representante de área da Capes, diretor da Anpocs e presidente da ABCP. Autor de vários livros, entre eles O Pêndulo da Democracia no Brasil e Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrátio e Degradação Política.

 

Discurso de ódio, liberdade de expressão e responsabilidade jurídica

Discurso de ódio, liberdade de expressão e responsabilidade jurídica

Sobreposição com discurso de fraude eleitoral pode desenhar cenário de violência com ares de caos social

Leonardo Avritizer 

Publicado no JOTA

Existe um debate em curso no Brasil sobre os limites legais à liberdade de expressão, com repercussão sobre a possibilidade de responsabilização jurídica – penal, inclusive – daqueles que professam discursos de ódio. Em recente entrevista publicada na Folha de S.Paulo, a professora da Fundação Getulio Vargas de São Paulo Clarissa Gross fez uma afirmação que reacendeu a polêmica no meio acadêmico.

Segundo a pesquisadora, para que uma fala seja criminalmente imputável “é preciso que a linguagem usada seja uma que no contexto signifique incentivo ou instigação para prática de crime e que haja contexto de probabilidade de que a fala irá levar à prática de crime”. Essa afirmação que poderia de forma genérica expressar as principais variáveis envolvidas no problema parece estar baseada em uma decisão de 1969 da Suprema Corte dos Estados Unidos, conhecida como Brandenburg v. Ohio. A pesquisadora, no entanto, ignora amplamente as discussões mais recentes sobre a mesma decisão; e parece ser incapaz de se posicionar sobre as questões concretas que envolvem as discussões sobre o discurso de ódio no Brasil hoje.

Vale a pena retomar o debate sobre liberdade de expressão e discurso de ódio nos Estados Unidos, em atenção à referência à Suprema Corte dos EUA. Desde os anos 1920 até 1960 as decisões da Suprema Corte expressam uma concepção de fundo segundo a qual toda e qualquer ideia poderia ganhar forma de incitação ao crime/violência. A jurisprudência do começo do século 20, tal como Debs v. United States ou Schemck v. United States, assumia que não havia conteúdo que não pudesse se configurar discurso de ódio, sinalizando a clara intenção de punir discursos políticos heterodoxos/alternativos, tanto de extrema direita quanto de esquerda.

Essa tendência irá se modificar nos anos 1960 quando surge o caso Brandenburg, que deve ser explicado devido à sua importância na jurisprudência sobre crimes de ódio. O caso envolve um membro da seita de extrema direita Ku Klux Klan que convenceu um repórter televiso a filmar uma reunião da Klan na qual uma das falas aventou a possibilidade de que o discurso de Clarence Brandenburg incentivava revanches contra negros e judeus. Com base nessa fala, Clarence Brandenburg foi condenado por violar a Lei Criminal Sindical do Estado de Ohio, por supostamente advogar mudanças políticas e econômicas radicais por meios criminosos ou violentos. O estatuto legal, de 1919, foi promulgado à época do chamado “first red scare” – mobilizações de esquerda nos EUA do começo do século 20 – em um contexto de repressão das opiniões divergentes às do governo.

A Suprema Corte foi acionada e reverteu a condenação, afirmando o seguinte: “(…) a garantia constitucional de liberdade de expressão e da imprensa livre não permite ao Estado proibir ou proscrever a advocacia do uso da força ou da violação da lei com exceção das situações nas quais essa advocacia está dirigida a incitar ou produzir uma ação ilegal iminente ou gera a probabilidade de um incitamento que produza tal ação”.

Em seu cerne, a decisão da Suprema Corte – que é extremamente relevante ainda hoje no que concerne às discussões brasileiras – gerou o que é conhecido na literatura como os três testes, o da advocacia, o da iminência de um ato ilegal e o da probabilidade de um ato ilegal. Sabemos que o centro da decisão da Suprema Corte no caso Brandenburg foi a crítica de que o estatuto do estado de Ohio não distinguia entre a advocacia e a iminência de um ato ilegal.

Naquela oportunidade, a SCOTUS colocou duas importantes questões posteriormente revistas em decisões supervenientes: a da proximidade (do crime de ódio em relação à incitação) e a do grau de risco (de que, de fato, o crime de ódio venha a ocorrer). Daí concluíram os ministros que “ações ilegais a serem efetivadas em algum futuro indefinido não justificam uma condenação, [ou seja], o perigo tem que ser iminente” (vide Wilson and Kiper, “Incitement in the era of populism”).

Para que se possa fazer útil a referência ao debate na SCOTUS, estabelecendo-se algum diálogo com as recentes decisões que têm sido proferidas sobre o tema pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e, em especial, pelo ministro Alexandre de Moraes, convém uma reflexão mais detida sobre os parâmetros contidos nos conceitos de perigo iminente, proximidade e probabilidade da ocorrência dos crimes de ódio.

Em primeiro lugar, é preciso colocar em perspectiva o argumento da SCOTUS sobre proximidade, que foi construído em uma era analógica, em que a transmissão televisiva (de nível local, pois se tratava de uma rede de TV do estado de Ohio, nos anos 1960) tinha alcance incomparável ao que pode ser estimado sob o domínio da web e das redes sociais. Ou seja, existe uma concepção de espaço e de tempo que mudou ao longo desses mais de 50 anos nos quais a decisão foi tomada – e isso não é desprezível.

Basta que se considere, por exemplo, que depois de ler uma informação online sobre o dono de uma pizzaria na Carolina do Norte que mantinha trabalhadores em condição análoga à escravidão um indivíduo dirigiu até lá e abriu fogo contra a loja. A notícia era falsa. (New York Times, 5/12/2016). Inúmeros elementos de conectividade, tais como a propagação dos smartphones, a redução do custo da telefonia e a ampliação da qualidade da conexão à internet, associados ao surgimento e expansão das redes sociais promovem uma ruptura com o monopólio da imprensa tradicional sobre a produção de conteúdo, o que é disruptivo. Todo e qualquer usuário, em todo lugar e a qualquer tempo se torna um agente político em potencial – essa é a medida do impacto dos discursos que protagoniza.

Particularmente, essa novidade induz uma série de atualizações da literatura, questionando, justamente, o conceito de perigo iminente mobilizado pela decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos. Recoloca-se o problema da espacialidade e da temporalidade. Na era das redes sociais, o que acontece em Ohio não fica em Ohio e o que acontece no Acre não fica no Acre.

Gross reclama o elemento contextual na caracterização do discurso de ódio, mas despreza a atualização da dimensão espaço-temporal que a web impôs às relações sociais. O presidente Jair Bolsonaro, em um evento de campanha ainda em 2018 – mais precisamente no dia 3 de setembro –, falou em fuzilar a petralhada. Bastou para que um conjunto de atos de violência política se somassem ao longo dos últimos anos.

Recentemente, a invasão de uma festa de aniversário de um militante do Partido dos Trabalhadores por um apoiador do presidente em Foz do Iguaçu (PR) resultou em um episódio emblemático de violência política, mas, se considerarmos a ortodoxia da jurisprudência da SCOTUS não encontraremos base sólida para estabelecer relação entre o discurso de ódio como incitação à violência de natureza política e o homicídio “de um guarda municipal”, tal como o presidente argumentou.

A violência política não está restrita a pessoas – eleitores ou lideranças políticas – senão que pode também ser dirigida a instituições – sedes de partidos políticos, eventos de campanha, órgãos eleitorais. A violência eleitoral é um tipo de violência política, que é um fenômeno enraizado e disseminado na política brasileira, mais intenso no nível local, de natureza econômica, envolvendo disputa pelo controle dos espaços de poder. No nível nacional, contudo, tem crescido impulsionada em boa medida pelas reiteradas manifestações do ainda presidente Jair Bolsonaro, que trata os adversários políticos como inimigos e prega, em muitas oportunidades, seu extermínio físico. A sobreposição do discurso de ódio e intolerância ao de fraude eleitoral pode vir a desenhar um cenário de violência pós-eleitoral com ares de caos social. Daí porque não apenas há crime, como também crime de responsabilidade.

Gross não é capaz de avançar, pela sua via de argumentação, na compreensão das dimensões da violência política e eleitoral. Se não por outras razões, pelo fato de que ignorou solenemente que o emissor do discurso é ninguém menos que o presidente do Brasil. Observemos novamente os Estados Unidos, onde há dados sobre o aumento exponencial dos chamados crimes de ódio ao longo do primeiro ano do governo Trump. Apesar de os demais índices de criminalidade naquele país terem sido reduzidos no mesmo período, em 2017 os EUA reportaram 7.509 crimes de ódio – um aumento de 17% em relação ao ano anterior.

Há, portanto, pelo menos duas questões que Gross ou não responde ou responde mal: a primeira diz respeito à relação entre discurso de ódio propagado por macroatores ou pessoas de centralidade política e a questão da iminência de um crime; a segunda é se é adequado pensar a probabilidade de que um crime seja cometido a partir de um discurso deixando de lado marcos temporais ou espaciais que com a internet e as redes socais deixaram de fazer sentido. Essas não são questões abstratas: o fato de um discurso de campanha no Acre gerar mais de 17 mil entradas no Google mostra que o discurso tem continuidade temporal e deixa de estar ligado à referência espacial no qual ele se colocou.

Brandenburg v. Ohio assumiu corretamente que apenas a prática de advocacia de uma ideia pode não ser suficiente para uma condenação criminal e, para tanto, estabeleceu testes espaciais e temporais: advocacia, iminência e probabilidade de um ato ilegal. No entanto, na era do Twitter e dos discursos de ódio sendo promovidos pelo mainstream do sistema político, o teste espacial e temporal tem que mudar. O que interessa saber é se um discurso realizado por um macroator político com milhões de seguidores nas redes sociais e reproduzido em dezenas ou centenas de perfis deve, de fato, ter a correlata responsabilização limitada ao espaço e ao tempo da sua produção. A se julgar pelos dados que temos de crimes de ódio e escalada da violência política, a resposta é não.

LEONARDO AVRITZER – Coordenador do INCT IDDC e do Observatório das Eleições e da Democracia. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT – EUA. Foi representante de área da Capes (2005-2011), diretor da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (1997-1998) e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2012-2014). Autor de vários livros, entre eles “O pêndulo da democracia” e “Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política”

Observatório das Eleições 2022: a democracia em jogo

Observatório das Eleições 2022: a democracia em jogo

O Brasil tem uma normatividade jurídica perfeita no que diz respeito ao processo eleitoral. Mas os ataques do presidente às urnas eletrônicas colocam a votação em um nível de incerteza

Leonardo Avritzer*

Publicado no Nexo

 

Nas democracias consolidadas, existem eleições que são mais importantes e eleições que são secundárias e, frequentemente, marcadas pelo baixo comparecimento e pelo pouco interesse do eleitor. Nas democracias em consolidação – ou, por que não dizer, em desconsolidação, como parece ser o caso brasileiro –, eleições são oportunidades centrais para correções de rumo por parte da opinião pública. Não hesito em afirmar que a eleição de 2022 é a mais importante da história do Brasil desde que eleições presidenciais diretas e secretas (com sufrágio incluindo as mulheres) tiveram lugar em 1945. 

Enumero o que está em jogo: a soberania eleitoral, o fim de uma política de agressão e violência contra as mulheres patrocinada pelo Estado, o controle da violência e de um processo de armamento da população, o retorno de uma política de controle do desmatamento da Amazônia, o retorno de uma política de produção do orçamento com transparência, o retorno de uma relação entre orçamento e políticas públicas e o fim das agressões a todas as instituições contra majoritárias, em especial, o Supremo Tribunal Federal. 

Não é pouca coisa. E, portanto, não é pouca coisa o que pretendemos observar. Observação eleitoral pode ser um ato com diferentes configurações. Este Observatório, ligado ao INCT IDDC (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação), já realizou atividades acadêmicas de observação com o objetivo principal de ajudar o eleitor a entender os processos envolvidos na decisão do voto por meio da apresentação de dados que ajudem na compreensão de padrões eleitorais anteriores. E também trabalhamos na contextualização das disputas políticas nacionais e regionais. 

Com esses objetivos, realizamos uma ampla pesquisa de opinião pública nos anos eleitorais que ganhou destaque na cobertura do jornal O Globo, em sua nova seção, Pulso. Nesta edição 2022 do Observatório das Eleições, continuamos com as mesmas intenções, agora impulsionadas pelo reconhecimento de que vivemos uma eleição completamente atípica, que ocorre num cenário de incerteza completa no campo jurídico e nas redes sociais. Permitam-me elaborar os dois aspectos.

O Brasil tem uma normatividade jurídica perfeita no que diz respeito às eleições. Diferentemente dos Estados Unidos, que não têm uma autoridade eleitoral e têm um processo eleitoral determinado por legislações estaduais sobre o voto, o Brasil conta com o Tribunal Superior Eleitoral e um dia unificado de eleição, seguido por um método de apuração eletrônico consagrado nas últimas décadas. Ainda assim, não podemos negar que os ataques do presidente às urnas eletrônicas, hoje associados a fortes críticas dos mais altos dirigentes das Forças Armadas ao processo de apuração, colocam a eleição em um nível de incerteza. Ou seja, essa eleição irá transcorrer no campo de duas disputas: a de dois candidatos a presidente e a disputa entre o presidente e o TSE acerca da produção de um resultado eleitoral legítimo e aceito pelo conjunto da população. As redes sociais serão o campo por excelência desse embate, no qual o presidente deu os primeiros passos na sua reunião com os embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho. 

Naquele momento, ele antecipou a tática que provavelmente terá forte repercussão nos próximos dois meses: lançar sem provas a desconfiança em relação ao processo eleitoral e tentar envolver diversos atores no chancelamento dessa desconfiança, sem reconhecer o resultado a ser proclamado pela autoridade eleitoral, o TSE, no dia 2 de outubro. Esses atores são as Forças Armadas que, diga-se de passagem, estão relutantes em aderir a esse jogo, apesar dos posicionamentos do ministro da Defesa, das polícias militares e de milícias digitais bolsonaristas. Nesse contexto, podemos afirmar sem dúvida que a desinformação será ampla e exigirá um grande trabalho de esclarecimento. Assim, essa eleição envolverá não apenas a produção de um resultado, mas a sua legitimação posterior em diversas arenas. O Observatório das Eleições pretende, portanto, monitorar esse debate, contribuindo com análises para ajudar a esclarecer o público em relação às particularidades do processo de apuração, à legislação vigente e a um conjunto de processos de desinformação predominantes nas redes sociais bolsonaristas.

A partir desse cenário, algumas outras questões parecem adquirir relevância nestas eleições, entre elas a questão ambiental. Antes mesmo do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, a Amazônia e sua preservação já despontavam como agenda contenciosa, dado o desmonte das estruturas de fiscalização do Ibama e os conflitos entre o presidente Jair Bolsonaro e o Inpe (Instituto de Pesquisas Espaciais) que monitora o desmatamento em tempo real. Com o assassinato de Bruno e Dom, esse conflito mudou de patamar, revelando, de fato, uma presença do crime organizado na região que precisa ser contida imediatamente. O bioma amazônico pode estar próximo do ponto de não retorno e uma política de preservação pode se tornar o ponto central da relação entre o Brasil e alguns dos nossos parceiros europeus. O Observatório pretende cobrir a eleição também sob o ponto de vista do meio ambiente, das candidaturas ligadas ao agronegócio e das eleições regionais que podem determinar novas legislaturas.

Vale a pena ainda ressaltar uma outra dimensão central desta eleição, que é a recomposição da representação legislativa. O Brasil tem um Congresso Nacional predominantemente conservador há algumas décadas, mas o Congresso eleito para a legislatura 2018-2022 foi marcado por processos de inflexão política que colocam em risco a governabilidade e a transparência. Algumas mudanças recentemente realizadas por Arthur Lira merecem destaque: o aumento das emendas parlamentares, a introdução da emenda do relator e a existência de um orçamento secreto. Conjuntamente, essas mudanças tornam o ato de governar e executar políticas públicas praticamente impossível. É necessário devolver a execução do orçamento para os ministérios-chave, como Saúde e Educação; sem esse procedimento, implementar essas políticas se tornará impossível. Além disso, a predominância de bancadas conservadoras – como a do boi, a da bala e a da bíblia – torna o processo legislativo difícil para um presidente de esquerda. Essa eleição irá mudar o panorama do Congresso, em virtude de novas regras, como as federações partidárias e a cláusula de desempenho, mas ainda não temos como saber qual será a bancada que o novo presidente irá encarar no Congresso. O Observatório vai discutir essas mudanças e, se possível, apresentar dados inéditos sobre candidaturas estaduais.

Ainda em consideração ao cenário nacional desafiador, mais uma sombra paira sobre o processo eleitoral: a da violência desencadeada por uma eleição marcada pela radicalização dos sentimentos e emoções. As últimas semanas estão sendo marcadas por episódios de violência na campanha política. Depois de situações lamentáveis como o do drone em Uberlândia e o lançamento de fezes no comício do ex-presidente Lula na Cinelândia, tivemos o primeiro morto em Foz do Iguaçu, em um episódio que expressa a disseminação da violência no campo societário. Assim, teremos uma campanha marcada pela radicalização política, pela emoção e pela incerteza provocada por diversos ataques à democracia e ao processo eleitoral.

Nesse contexto, o objetivo do nosso Observatório será também um desafio: informar o eleitor de maneira equilibrada sobre cada uma das dimensões eleitorais, tentando cumprir o papel cívico de gerar informação confiável em meio a uma conjuntura turbulenta na qual esse objetivo parece ter sido secundarizado por muitos. Acreditamos que a disseminação de análise crítica e de esclarecimentos importantes em relação a análises enviesadas contribuirá para o fortalecimento da nossa democracia.

 

Leonardo Avritzer é coordenador do INCT IDDC e do Observatório das Eleições. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT (EUA). Foi representante de área da Capes, diretor da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) e presidente da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política). Autor de vários livros, entre eles “O Pêndulo da Democracia no Brasil” e “Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrátio e Degradação Política”.