Em uma democracia, é essencial a existência de uma separação de funções em diferentes órgãos para que haja um controle recíproco.
Fonte: Record News
Nesta penúltima semana de agosto, a sociedade brasileira (ou pelo menos parte da imprensa) parece ter se dado conta de algo que acontece há nove décadas: há ministros do Supremo Tribunal Federal que também são ministros do Tribunal Superior Eleitoral. Simultaneamente. E que os poderes de um ministro do Tribunal Superior Eleitoral são diversos.
Pelo desenho estabelecido por decreto do governo provisório de Getúlio Vargas instituído pela Revolução de 1930, o Brasil conta com uma autoridade eleitoral que reúne competências administrativas (organizando as eleições), jurisdicionais (julgando ações eleitorais, inclusive criminais) e, sem previsão constitucional expressa, normativas (expedindo instruções ou resoluções).
Com essa reunião de atribuições, a Justiça Eleitoral brasileira exerce poder de polícia (como dispõe atualmente o artigo 40 da Lei das Eleições, ao tratar de propaganda) e também analisa ações eleitorais sobre propaganda irregular ou contra o poder de polícia. Eventualmente, como se deu esse ano, as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral trazem regras sobre a comunicação política para além do estabelecido em lei, como no caso das obrigações das plataformas digitais e uso da inteligência artificial. Ou seja, o mesmo organismo tem variadas atribuições e decide sobre ações suas e sobre as regras eleitorais, inclusive aquelas que eventualmente cria.
Esse sobreposição de competências não é problema de um ou outro integrante, ainda que se possa verificar uma crescente atividade normativa nas composições do Tribunal Superior Eleitoral das duas últimas décadas. É um problema de desenho institucional, de ausência de um organismo separado para atividades diferentes, o que permitiria um controle recíproco de eventuais abusos.
Mas há um órgão, também jurisdicional mas que não compõe a Justiça Eleitoral, que pode rever decisões e atos do organismo eleitoral. É o Supremo Tribunal Federal, composto por onze integrantes, e que tem como tarefa primordial proteger a Constituição e, portanto, afastar qualquer ato normativo ou comportamento contrários à Constituição, mediante provocação.
Desses integrantes do Supremo Tribunal Federal, três integram também o Tribunal Superior Eleitoral, ao lado de dois integrantes compartilhados com o Superior Tribunal de Justiça e dois integrantes juristas indicados pelo Presidente da República a partir de uma lista de três nomes para cada indicação apresentada pelo Supremo Tribunal Federal. A atuação no TSE é por um período de dois anos. A presidência do Tribunal Superior Eleitoral é sempre ocupada por um ministro ou ministra do Supremo Tribunal Federal que, volto a frisar, continua atuando no STF.
Essa composição mista está presente também nos tribunais regionais eleitorais. Em cada Estado, são sete integrantes: dois do Tribunal de Justiça do Estado, dois da magistratura estadual, um da magistratura federal e dois integrantes juristas indicados pelo Presidente da República a partir de uma lista de três nomes para cada indicação apresentada pelo Tribunal de Justiça do Estado. Todos e todas também com mandatos de dois anos. Para as eleições municipais como as de 2024, a autoridade eleitoral é exercida por integrantes da magistratura estadual, também com a cumulação de funções nos juízos eleitorais.
Há, no desenho institucional da autoridade eleitoral brasileira, desde a Constituição de 1934 (com exceção da Constituição de 1937, que instituiu o Estado Novo e não menciona a Justiça Eleitoral), alguns problemas. As Constituições de 1946, 1967, 1969 e 1988 repetiram a fórmula do decreto de 1932 e permitem essa concentração de atribuições e o compartilhamento de integrantes, além da composição com interferência da Presidência da República. O que se explica em um momento autoritário, como aquele do governo provisório e durante a ditadura civil-militar, mas não se sustenta em regimes democráticos.
Para evitar surpresas como a da referida semana, é preciso repensar o nosso modelo de governança eleitoral. Não se nega que somos o país que melhor organiza eleições, que garante resultados em poucas horas e que conta com um sistema de votação e apuração auditável e seguro. Mas, em uma democracia, é essencial a existência de uma separação de funções em diferentes órgãos para que haja um controle recíproco. E sem cumulação de atribuições em diferentes órgãos. Eneida Desiree Salgado é professora de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral na Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora líder no NINC - Núcleo de Investigações Constitucionais.
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