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Quando partidos de direita ocupam o centro do sistema partidário

Atualizado: 11 de nov.



Carlos Ranulfo Melo


Contabilizados os votos do primeiro turno das eleições municipais, veio à tona a discussão sobre quem teria se saído melhor. Baseado no fato de que PSD e MDB assumiram a dianteira no que se refere ao número de prefeitos eleitos, parte dos analistas optou por destacar o desempenho do centro, em contraposição à ideia de que a direita teria “ganho” as eleições. Nada mais equivocado. Para compreender por que, é preciso trazer para a discussão a transformação pela qual passou o sistema partidário brasileiro nos últimos anos.


Um bom ponto de partida é entender que o núcleo de qualquer sistema partidário, enquanto sistema, é constituído pela maneira como se estrutura a competição pelo governo central. No Brasil, as eleições presidenciais de 2018 e 2022 alteraram o que pode ser denominado como o espaço da competição pelo Executivo federal, seus protagonistas e suas estratégias.


Entre 1994 e 2014, a competição pela Presidência da República esteve estruturada em torno de duas coalizões ideologicamente distintas – uma encabeçada pelo PT e outra pelo PSDB. Um terceiro grupo de partidos, composto por MDB, PP, PTB, PR (hoje PL) e PRB (hoje Republicanos), se colocava estrategicamente, ainda que não ideologicamente, entre as duas coalizões, apresentando-se como alternativas disponíveis para a formação de coalizões governistas.


A partir de 2018, o espaço da competição foi dramaticamente alterado: de uma disputa entre coalizões de centro-esquerda e centro-direita para uma outra, entre a centro-esquerda e a extrema direita. O PT manteve sua posição, mas o impacto sobre os partidos de centro foi enorme – o PSDB transformou-se em uma legenda sem expressão e o MDB viu despencar suas bancadas no Congresso.


Na medida em que não existem partidos relevantes situados nas posições mais extremas à esquerda – o PT é um esquerda moderada – e que os tradicionais partidos de centro perderam competividade, o sistema partidário brasileiro passou por um notável deslocamento para a direita, puxado pelas posições assumidas pelo que, na falta de uma designação mais adequada, se convencionou chamar de bolsonarismo.


Em um sistema partidário, o centro político pode expressar uma posição em si, dotado de consistência programática ou, simplesmente, se caracterizar como um espaço situado entre esquerda e direita. Cá entre nós, o PSDB se enquadrava na primeira alternativa. Já o MDB se encaixava melhor na segunda, caracterizando-se como um agregado de interesses regionais precariamente unificados, cujas grandes bancadas no Congresso permitiam que se apresentasse como uma espécie de “fiador da governabilidade”.


O surgimento de uma extrema direita dotada de expressiva e mobilizável base social, amparada por grandes bancadas no Congresso e, como acabamos de constatar, capaz de eleger um número considerável de prefeitos, modificou por completo a dinâmica do sistema partidário. Se antes os partidos de direita gravitavam em torno do centro (no caso, do PSDB), hoje estão sob a força de atração da extrema direita que, diga-se, opera com desenvoltura também entre o que restou dos partidos de centro, como demonstram as candidaturas do MDB em São Paulo, Porto Alegre e Boa Vista, ou a do PSDB em Campo Grande.


Uma vez que a competição pelo governo central se mantenha entre posições de centro-esquerda e de extrema direita, o ponto equidistante entre as forças políticas que encabeçarão a disputa deslocou-se, assim como todo o sistema, para a direita. Em outros termos, o centro do sistema partidário passou a ser compartilhado por partidos da direita tradicional – que nem por isso deixam de estar ideologicamente à direita.


Isso ajuda a entender por que o PSD e até mesmo o União Brasil ou o PP têm aparecido em diversas análises como organizações de centro. Hoje, no lugar do MDB, são os representantes da tradicional direita brasileira que se apresentam como “fiadores da governabilidade”. Com a palavra, Arthur Lira.


Resultados das urnas


Foi, portanto, a direita quem ganhou as eleições. Segundo dados disponibilizados pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), União, PP, PL, PSD, PTB, Republicanos, Podemos, PRD, Novo, Agir, DC, PMB e PRTB conquistaram 61,5% das prefeituras que tiveram a eleição definida no primeiro turno. Os partidos de centro – MDB, PSDB, Avante, Solidariedade, Cidadania, PV e Mobiliza – foram vitoriosos em 25,2% dos municípios. PSB, PT, PDT, PCdoB e Rede ficaram com os demais 13,5%. Os percentuais são ainda mais expressivos quando o foco recai sobre os municípios com mais de 200 mil eleitores nos quais não foi necessário um segundo turno: a direita venceu em 39 das 51 cidades (76%).


O segundo turno deverá confirmar esse quadro. Nos 52 municípios em questão, 64,7% dos candidatos pertencem a partidos de direita, com nítido destaque para o PL, enquanto centro e esquerda possuem 17,6% cada um. Para efeito de comparação, concluídas as eleições de 2020, a direita havia conquistado 54,5% das prefeituras, o centro, 30,8%, e a esquerda, 14,7%.


Os resultados de agora, como seria de se esperar, estimulam a projeção de cenários para 2026. Alguns se arriscam a falar sobre a disputa presidencial, mas, nesse caso, qualquer aposta é temerária, uma vez que são muitas as incógnitas. Não se sabe

quem vai concorrer pelo bolsonarismo e, como mostraram as eleições para as prefeituras de São Paulo e Curitiba, pode haver mais de um candidato.


Também é preciso considerar o impacto político dos processos contra Jair Bolsonaro supondo, é claro, que sejam concluídos. Não se pode descartar a hipótese de que os partidos da direita “tradicional” optem por lançar um candidato. Em 2022, o União lançou Soraya Thronicke e o partido se manteve neutro no segundo turno. Para 2026, Ronaldo Caiado, governador de Goiás, tem reafirmado sua candidatura. Pelo PSD, que também liberou seus filiados quatro anos atrás, Kassab tem dito preferir que Tarcísio de Freitas concorra à reeleição em São Paulo (...). E, para não alongar a lista, será preciso ver como o governo Lula chegará a 2026.


Mas, se as atenções se voltarem para a Câmara dos Deputados, o nível de incerteza sobre 2026 diminui consideravelmente. Nesse caso, os partidos de direita partirão em nítida vantagem: eles detêm hoje cerca de 60% dos mandatos, irão manter a presidência da Casa e são largamente beneficiados pela absurda transferência de recursos públicos via emendas parlamentares. Como se não bastasse, terão um exército bem maior de prefeitos e vereadores à disposição na batalha pelo voto em relação a seus competidores ao centro e à esquerda.


PSD, União e mesmo PP e Republicanos (que devem se manter na órbita do bolsonarismo) experimentam uma situação relativamente cômoda. Podem manter o seu pacto de convivência com o governo Lula: em troca de um apoio condicionado – o que implica em barganhas frequentes e deserções aos montes a depender do tema em votação –, asseguram posições que lhes permitem extrair o máximo de benefícios possível. Caso o governo se saia bem e Lula se recandidate com sucesso, não haverá problemas, pois estarão fortalecidos o suficiente para ter lugar assegurado no governo. Caso contrário, como “fiadores da governabilidade”, irão oferecer seus serviços a outro mandatário.


As forças progressistas estão diante de um jogo ruim. No campo do adversário, como diria o saudoso Gonzaguinha, veem a direita tentando avançar de forma cada vez mais desinibida sobre uma série de avanços democráticos e civilizatórios garantidos pela Constituição de 1988. A vitória de Lula em 2022 não foi suficiente para deter a reação, como mostra o fato de que, sob seu governo, uma agenda conservadora tenha tido maior trânsito no Congresso do que sob Bolsonaro. É preciso entender o que mudou no país e possibilitou uma alteração tão expressiva na correlação de forças. E, então, articular frentes amplas, sem hegemonia, e desenvolver estratégias comuns.


Imagem: Sessão deliberativa no plenário da Câmara dos Deputados (Mário Agra/Câmara dos Deputados)


Este artigo foi publicado pelo jornal O Globo em 17/10/2024.

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