Um Ministério dos Povos Originários: algumas reflexões sobre a proposta de Lula

Um Ministério dos Povos Originários: algumas reflexões sobre a proposta de Lula

Leonardo Barros Soares

Publicado nos Ninjas

 

Em meio ao debate presidencial ocorrido no último dia 16, o candidato Lula afirmou: “vou criar um Ministério para os povos originários nesse país”. Numa campanha eleitoral marcada mais por debates sobre o passado – os legados dos dois governos Lula e do governo Bolsonaro – do que perspectivas de futuro, essa é uma proposta, de fato, novedosa. Trata-se de um aceno importante para os povos indígenas do Brasil, um segmento social historicamente vulnerável, em especial durante os governos Temer e sobretudo nos últimos quatro anos. A ideia já havia sido anunciada para os próprios indígenas durante o Acampamento Terra Livre, a reunião anual do movimento indígena em Brasília, em abril. Dado seu caráter de inovação institucional, neste artigo gostaria de examinar, brevemente, a proposta do candidato Lula, de modo a aprofundar o entendimento sobre as possíveis repercussões de tal sugestão na eventualidade de sua eleição no domingo.

Para começar, vale a pena entender a institucionalidade destinada ao atendimento dos povos indígenas que já existe. É possível que a maioria dos brasileiros conheça ou já tenha ouvido falar da Fundação Nacional do Índio (Funai). Trata-se da agência brasileira responsável pelo desenho, implementação e avaliação da política indigenista do Estado brasileiro desde 1968, quando substituiu o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), cujas origens remontam a 1917. Por política indigenista designamos, grosso modo, uma forma organizada de contato político entre povos indígenas e não-indígenas no âmbito das atividades desenvolvidas pelo Estado, sobretudo aquela que se refere ao reconhecimento administrativo de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas do país. Esse é o “carro chefe” da política destinada a esse segmento populacional por motivos óbvios: a terra é o lastro material fundamental para a existência desses grupos enquanto tal. 

Há uma série de decretos, portarias e leis que regulamentam o rito demarcatório no país cujas tecnicalidades não vem ao caso agora. O importante, para o argumento que desenvolvo aqui, é sabermos que a média de tempo para a conclusão do processo desde sua fase inicial – o estabelecimento de um grupo de peritos para a identificação do território – até o seu final, quando da inscrição da terra indígena no Serviço de Patrimônio da União,  é de 15 anos. São vários os casos de demarcações que chegam até a 20 ou 30anos para serem concluídas. Isso é razoável? Claro que não. Isso não quer dizer que o processo demarcatório não seja eficaz – contar com 13% do território nacional como de ocupação tradicional indígena não deixa de ser um feito sui generis num país marcado pela extrema concentração fundiária e violência no campo. Mas, quer dizer, sim, que o processo é altamente ineficiente. E, para alterar isso, certamente são necessárias mudanças institucionais.

A criação de um Ministério resolveria a questão? Tenho minhas dúvidas. Em que pese o fato de que existem poucos estudos comparativos disponíveis abordando os diferentes desenhos institucionais das burocracias indigenistas em diversos países, a evidência disponível nos sugere cautela na análise. 

Por um lado, parece-me que pouco importa o modelo institucional. Pode seja uma fundação, secretaria ou instituto voltados para a questão indígena, como nos casos do Brasil, Chile e Argentina, respectivamente. Pode ser também um (ou mais) ministério (s), como são os casos canadense, australiano e neozelandês. O que importa parece ser, no fim do dia, o peso político de suas burocracias e lideranças. Lembremos que, no Canadá, pelo menos dois primeiros-ministros atuaram, em suas carreiras políticas, nos órgãos indigenistas do país. Algo nem remotamente parecido já aconteceu por aqui. Presumindo-se que, no Brasil, o ministro/a ministra da pasta fosse um/uma indígena, a questão que se coloca é a seguinte: quem teria a força política para fazer frente à coalizão de interesses anti indígenas no Congresso?

Por outro lado, se a proposta significar a eliminação da instituição intermediária entre a Funai e a Presidência – hoje, no caso, o Ministério da Justiça – então é possível aventar a hipótese de que o tempo de demarcação possa, sim, diminuir. Pouco se sabe, de fato, em termos acadêmicos, do que se passa nos corredores da pasta quando se trata de decisões relativas aos povos indígenas e, consequentemente, temos pouca capacidade de sugerir melhorias no fluxo administrativo que poderiam impactar a eficiência do processo em tela. No entanto, do ponto de vista meramente formal, é presumível que, quantos menos forem os gargalos burocráticos, melhor.

É evidente que, do ponto de vista simbólico, a proposta tem peso. Alçar a questão indígena a um status ministerial significaria, de forma inédita, o reconhecimento de que os povos originários não se extinguiram nem se “integraram à comunhão nacional” – como pensavam muitos policymakers e intérpretes do Brasil durante o século XX. Eles demonstraram uma capacidade de resiliência, mobilização e articulação política impressionante. No entanto, é forçoso lembrar que só o simbolismo não basta para concretizar os anseios de justiça dessa população. Seria preciso dotar o Ministério de orçamento vigoroso, burocracia especializada, articulação política e capacidade de execução de seus objetivos. Caso contrário, os riscos de inação e ampliação da desconfiança para com a já desgastada política indigenista podem ser consideráveis e, talvez, inescapáveis. 

Pessoalmente, penso que a proposta poderia ganhar mais peso se o eventual Ministério não se destinasse apenas aos povos indígenas, mas a todos os povos tradicionais do país, com especial destaque para os quilombolas. A atual divisão do processo de reconhecimento de comunidades entre o Incra e a Fundação Palmares parece ser simultaneamente ineficaz e ineficiente e sua centralização numa única instituição poderia fazê-lo avançar de forma significativa. Quatro anos de ampliação do direito dos quilombolas à ocupação tradicional de seus territórios reforçaria o estoque de terras coletivamente habitadas com foco na reprodução social e cultural desses grupos e na preservação ambiental.  

Concluo apontando para o forte contraste entre as duas candidaturas presidenciais no que se refere aos povos indígenas. Se a proposta de Lula pode e deve ser debatida, ela não é, todavia, trivial. Trata-se de uma proposta construtiva, digna e respeitosa, que consagra a crescente relevância política dos povos indígenas no Brasil nas últimas décadas. Caso eleito, Lula poderá marcar de forma definitiva o presente e o futuro dos povos originários.

Com que roupa eu vou? O papel da tática bolsonarista da hegemonia verde e amarela nas ruas

Com que roupa eu vou? O papel da tática bolsonarista da hegemonia verde e amarela nas ruas

Mariana Borges Martins da Silva 

Assim como nas eleições de 2018, a desinformação vem de novo sendo considerada a principal tática de campanha da extrema direita brasileira. Porém, há uma outra tática eleitoral deste grupo que tem recebido menor atenção no debate público e no campo progressista, mas que pode ter um papel determinante no contexto dessa eleição acirrada: a projeção de força eleitoral.

A análise das redes sociais e de grupos de whatsapp bolsonaristas revela que, ao lado da divulgação de notícias falsas sobre Lula, a projeção de força eleitoral por meio de imagens de hegemonia do campo bolsonarista nas ruas é parte constitutiva do portfólio de campanha da extrema direita brasileira. E para construir uma impressão de hegemonia nas ruas, a campanha de Bolsonaro se utiliza de três táticas: exagera o apoio popular à Bolsonaro, desacredita o apoio popular à Lula e faz ameaças de violência para suprimir manifestações públicas de apoio a Lula.

Para criar imagens de hegemonia nas ruas, a campanha de Bolsonaro investe desde muito cedo e de forma constante na produção de imagens que mostram Bolsonaro rodeado de uma multidão de apoiadores. No imaginário bolsonarista, cotidianamente divulgado em seus grupos de Whatsapp e em outras redes sociais, as imagens de grandes multidões que saem às ruas para saudar Bolsonaro seriam a prova cabal de que ele é o líder com maior capacidade de mobilização e apoio entre as massas. 

São essas mesmas imagens que são usadas por bolsonaristas para desacreditar as pesquisas eleitorais, nas quais Lula segue na frente de Bolsonaro. Na lógica sensorial que rege a projeção de força por meio de imagens, não é possível que um candidato que mobilize tamanha multidão por onde anda não esteja em primeiro lugar nas pesquisas. A mesma lógica foi utilizada no primeiro turno para desacreditar as urnas eletrônicas antecipando qualquer resultado que não mostrasse Bolsonaro vitorioso. Ao longo da campanha, Bolsonaro e seus aliados repetiram esse discurso à exaustão: “Em qualquer lugar que eu vá no Brasil, […], a aceitação é simplesmente excepcional, não tem como a gente não ganhar em primeiro turno”, disse Bolsonaro quando esteve em Londres para o enterro da rainha Elizabeth.

Ainda que o campo bolsonarista venha dando menos ênfase à produção de imagens de multidões de verde e amarelo no segundo turno diante da força demonstrada nas urnas, ele não deixou de se preocupar em passar a imagem de hegemonia nas ruas. Tanto que, recentemente, Bolsonaro pediu que eleitores fossem votar de verde e amarelo e permanecessem nos locais de votação até a apuração do resultado. Com isso, Bolsonaro visa incentivar seus eleitores a criarem uma massa de verde e amarelo em cada seção eleitoral criando, assim, para todos os eleitores no dia da votação uma experiência visual e táctil de hegemonia bolsonarista.

As narrativas do campo bolsonarista que jogam dúvidas sobre a confiabilidade tanto das pesquisas eleitorais quanto das urnas eletrônicas também ajudam na segunda tática que Bolsonaro utiliza para construir sua imagem de hegemonia: a de desqualificar o apoio popular de Lula. E novamente aqui o campo bolsonarista usa imagens de rua para embasar sua narrativa de que Lula não é um líder popular. Nas redes sociais, bolsonaristas divulgam constantemente fotos e vídeos que mostram eventos a favor de Lula esvaziados, acusam a campanha de Lula de manipular fotos para o evento parecer mais cheio ou de pagar pessoas para irem aos seus eventos.

Essas são táticas explícitas de projeção de força política. Há, porém, táticas indiretas que ajudam o campo bolsonarista a criar entre os eleitores a sensação de que ele é majoritário. Uma delas é a ameaça velada ou explícita de violência política. Pesquisas de opinião pública mostram que eleitores de Lula tem muito mais medo de violência política do que os eleitores de Bolsonaro. O maior medo de violência política entre os eleitores de Lula é acompanhado de relatos desses eleitores optando por não revelar seu voto publicamente e evitando o uso de adereços associados ao campo lulista. Ao tornar o apoio a Lula quase que um apoio clandestino e invisível em meios sociais e cidades nas quais supostamente o bolsonarismo é dominante, o medo de violência política silencia e apaga o campo lulista. Ele torna impossível uma quebra da hegemonia visual do bolsonarismo e reforça ainda mais a impressão de sua hegemonia, mesmo onde ele seja porventura minoritário. O reforço dessa suposta hegemonia bolsonarista diante do silêncio do campo adversário é semelhante ao fenômeno descrito por Elisabeth Noelle-Neumann como Espiral do Silêncio. Ela se refere à tendência daqueles que se percebem como tendo uma opinião minoritária silenciar, fortalecendo, portanto, a percepção de que o outro campo é supostamente majoritário.  

A criação de uma impressão de hegemonia bolsonarista nas ruas é real e não se deve subestimar os dividendos eleitorais que ela pode gerar. O efeito é real porque a hegemonia do verde e amarelo nas ruas, seja pelas bandeiras nas sacadas ou pela visualização constante de imagens de Bolsonaro em meio a multidões, oferecem aos eleitores uma experiência sensorial da força de Bolsonaro, que pode ser sentida e registrada pelo eleitor de forma muito mais significativa do que a racionalidade dos números de uma pesquisa eleitoral.

Depoimentos tanto de eleitores de Lula quanto de Bolsonaro revelando surpresa com o resultado das urnas no primeiro turno ilustram como a hegemonia visual do verde e amarelo nas cidades cria nos eleitores a forte impressão de dominância do campo bolsonarista. Logo após a apuração dos votos, era ainda frequente nos grupos de whatsapp bolsonaristas a narrativa de que houve fraude nas urnas, uma vez que Bolsonaro não havia ganhado com larga vantagem já no primeiro turno. E, novamente, o argumento usado era de que diante da força do verde e amarelo nas ruas, não era possível que Bolsonaro estivesse atrás de Lula. 

Em um áudio de um grupo de WhatsApp de apoio ao candidato bolsonarista em uma cidade do interior da Bahia onde Lula teve 73%, uma eleitora expressou sua incredulidade nos poucos votos que Bolsonaro teve na sua cidade diante do grande número de pessoas de amarelo que ela viu em seu bairro: “Gente não dá nem pra acreditar, porque aqui o que a gente via era as pessoas chegando de roupa amarela, […] se todos que estavam de verde e amarelo votassem, aqui mesmo tinha estourado de votos no bairro da Urbis.” Do outro lado do país, em Chapecó (SC), um eleitor de Lula dizia à Folha de São Paulo estar surpreso por Lula ter conquistado 36% dos votos em sua cidade, pois pensava que lá “era quase todo mundo eleitor de Bolsonaro”.

Ainda que longe de serem representativos, esses dois depoimentos revelam que a dominação visual de Bolsonaro nas cidades tem o potencial de gerar a impressão de hegemonia do bolsonarismo para além de apoiadores fiéis de Bolsonaro e até mesmo em locais onde o bolsonarismo é numericamente minoritário. E, por que isso importa? Isso importa porque o sucesso em produzir a impressão de hegemonia pode gerar dividendos eleitorais para Bolsonaro, cruciais, sobretudo, em uma eleição disputada em que os dois candidatos têm altos índices de rejeição.

A aparente consolidação das intenções de voto apresentada nas pesquisas eleitorais pode gerar a falsa impressão de que os votos estão consolidados. Como sabemos, em uma eleição em que os dois candidatos têm altos índices de rejeição, uma parcela do apoio de um candidato vem da rejeição ao outro. Porém, é um erro considerar que todo voto anti-Lula ou anti-Bolsonaro esteja consolidado na mesma intensidade que o voto dos apoiadores entusiastas de Lula ou de Bolsonaro. É possível que para essa parte dos eleitores que não são fidelizados a nenhum dos lados e que tenha restrições aos dois candidatos, a opção de voto seja mais volátil e suscetível de ser moldada pela campanha. 

Uma evidência de que há uma parcela significativa de eleitores cujo voto é mais volátil é a quantidade de eleitores que decidiram seu voto de última hora. Pesquisa do Datafolha realizada após o primeiro turno indica que pelo menos 10% dos eleitores confessam ter feito sua decisão sobre o voto na véspera ou no dia da eleição e outros 10% há apenas uma ou duas semanas antes do dia da eleição. Em uma eleição em que os dois candidatos têm alto grau de conhecimento entre os eleitores, a tomada de decisão de último momento não se dá porque os eleitores ainda não conheciam os candidatos, mas porque, diante do alto grau de rejeição dos dois lados, parte dos eleitores não identifica um critério significativo para levá-lo a apoiar um candidato ou rejeitar completamente outro.

Há uma ampla gama de estudos em diversas áreas, do consumo ao comportamento político, que demonstra a tendência dos indivíduos adaptarem o seu comportamento para seguir a maioria. Há diversos motivos que os levam a isso. Um deles é que em situações de incerteza, quando há dificuldades para escolher um lado, o comportamento da maioria serve como um atalho mental para os indivíduos tomarem decisões. E é aí que o sucesso do campo bolsonarista de criar impressões de hegemonia nas ruas e redes sociais pode ser crucial para Bolsonaro angariar o voto desses eleitores voláteis. Como discutido, a extrema direita parece entender a importância de criar a impressão de hegemonia nas ruas a ponto disso ser parte constitutiva de suas táticas eleitorais. Ainda que não esteja totalmente ausente de seu portfólio, a campanha de Lula ainda cambaleia sobre sua estratégia de demonstração de força política. Um dia antes da eleição no primeiro turno, por exemplo, a campanha de Lula lançou um vídeo em suas redes sociais convocando os eleitores às urnas, mas enfatizando que não importava a roupa que vestiriam. Já no segundo turno, a senadora Simone Tebet pede para a campanha de Lula substituir o vermelho pelo branco para diminuir a associação da campanha com o PT. Ainda que compreensíveis diante do medo de violência política e da frente ampla que a candidatura de Lula representa, tais ações não ajudam o campo lulista a sair da Espiral do Silêncio e, eventualmente, a quebrar a sensação de hegemonia visual do verde e amarelo. Para buscar o voto volátil neste fim de campanha, o campo lulista deveria considerar a importância de contrapor nas ruas a aparente hegemonia do verde e amarelo com o seu vermelho.

 

Mariana Borges Martins da Silva é pesquisadora de pós-doutorado no Nuffield College, Universidade de Oxford. Mariana é Ph.D em Ciências Políticas pela Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos. 

Decisões do TSE que prejudicam Bolsonaro são compartilhadas como censura em grupos de WhatsApp e Telegram

Decisões do TSE que prejudicam Bolsonaro são compartilhadas como censura em grupos de WhatsApp e Telegram

 Amanda Mota e Bia Calza

Publicado no GGN

 

A série de decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que se iniciaram com a desmonetização de quatro canais pró-Bolsonaro no Youtube, no último dia 18, provocou uma avalanche de mensagens em grupos de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro no WhatsApp e no Telegram. O formato das mensagens mais compartilhadas mistura fatos, notícias falsas e opinião para criar desordem informacional, induzir o eleitor brasileiro a acreditar em uma narrativa de censura (de apenas um dos lados) e gerar confusão sobre o conceito de liberdade de expressão.

 

No dia 18 de outubro, quando se iniciou a coleta, o TSE decidiu desmonetizar quatro canais pró-Bolsonaro no Youtube. Também suspendeu um documentário da produtora Brasil Paralelo sobre a facada em Bolsonaro em 2018, que agora será veiculado apenas depois do segundo turno. A corte também suspendeu conteúdo que associa Lula a aborto, drogas e assassinato, e concedeu direito de resposta a Lula em inserções na TV da campanha de Jair Bolsonaro.

 

Nossa análise das mensagens mostra que a campanha de desordem informacional nos grupos de apoiadores de Bolsonaro no WhatsApp e Telegram utilizou três estratégias, a partir das decisões da corte, para descredibilizar o processo eleitoral. No WhatsApp, entre as mensagens mais compartilhadas estão links destinados a divulgar sites de junk news com conteúdos sobre as decisões da corte. Esses sites mimetizam a linguagem jornalística para divulgar teorias da conspiração, ataques à imprensa e divulgação de conteúdo hiper partidário, sem respeitar padrões jornalísticos. Para ganhar tração e forçar uma descoberta pseudo-orgânica no Google, esses sites se utilizam de técnicas avançadas de SEO (Search Engine Optimization – que é um conjunto de ações usadas para posicionar o seu site bem nas buscas orgânicas no Google). Um estudo da universidade de Oxford mostra que a maior parte da receita desses sites vem justamente da remuneração que o Google dá a eles de acordo com as suas audiências, pelos anúncios que veicula ao lado dos conteúdos desses sites.

 

Entre as dez mensagens mais compartilhadas no período da coleta, oito são de links desses sites. A segunda mensagem mais compartilhada na amostra analisada é a seguinte: “BRASIL: LULA e PT entram com um pedido no TSE para acabar com a liberdade de expressão (Gustavo Gayer); ASSISTA https://www.pensandodireita.com/2022/10/brasil-lula-e-pt-entram-com-um-pedido.html?m=1”.

 

Outros portais de junk news aparecem como os mais presentes nas mensagens virais nos grupos de WhatsApp de apoiadores de Bolsonaro, como Vista Pátria, Terra Brasil, Jornal da Cidade Online, Conexão Política e Gazeta Brasil. O monitoramento de outros assuntos veiculados nesses grupos mostra que há compartilhamento sistemático de links desses sites. Usualmente, o número que dispara o link é o mesmo em diversos grupos. Isso aponta para o aproveitamento comercial do ecossistema bolsonarista de mensageria privada. É um rico canal de alavancagem de audiência.

 

Nas mensagens que contêm texto e não apenas links para esses sites, há diferentes estratégias discursivas para dar legitimidade à narrativa de que há um projeto ditatorial de censura em curso no Brasil. Uma delas é misturar conteúdo verdadeiro a conteúdo falso, tornando a realidade praticamente indistinguível para um usuário incauto.

 

Em outra amostra de mensagens, circula com mais frequência uma lista de “proibições” do TSE, que mistura decisões verdadeiras da corte com conteúdos falsos e absurdos, como uma suposta decisão vedando o uso de bandeiras do Brasil em fachadas de igrejas. Na verdade, a Justiça negou o pedido do PT para retirar a bandeira da fachada de uma igreja da Assembleia de Deus no Pará.

 

Já no Telegram, há mais imagens e vídeos do que texto sendo compartilhado sobre o tema. Entre os textos mais virais, verifica-se o uso ostensivo de desinformação deliberada e de caráter alarmista. A mensagem mais enviada nos grupos monitorados é uma notícia falsa que afirma que o TSE proibiu a comemoração do dia do médico. O texto se inicia com a expressão “censura sem limites” em negrito e caixa alta.

 

Curiosamente, os pedidos da campanha do presidente Jair Bolsonaro ao TSE de derrubada de conteúdos ou canais que o prejudicam e as decisões da corte que determinam a retirada de conteúdos anti-Bolsonaro (como a decisão que mandou o Twitter tirar do ar um post do deputado André Janones (AVANTE-MG)) não são tratados como censura.

 

É importante ressaltar que os ataques ao processo eleitoral têm acontecido em diversas redes sociais, em forma de campanha permanente, e não apenas no período eleitoral. A narrativa de que haveria censura por parte do TSE é apenas mais uma dedicada a descredibilizar as eleições, que se junta ao ataque às urnas eletrônicas, ao judiciário de maneira geral, aos institutos de pesquisa e à imprensa.

 

A análise acima considerou uma coleta de 476451 mensagens em 326 grupos no WhatsApp, e 276476 mensagens de 172 grupos  no Telegram, do dia 18 ao dia 20 de outubro. Foram consideradas as seguintes palavras-chave: censura, TSE, ditadura, Brasil Paralelo, Jovem Pan, Venezuela e STF. Os dados são do Projeto Farol Digital do Departamento de Computação da UFC.

 

Amanda Mota – Graduada em Ciência Política na Universidade de Brasília. Pesquisa sobre internet e populismo.

 

Bia Calza é mestranda em Ciência Política na Universidade de Brasília e pesquisa desinformação política. É estrategista de comunicação política da Avaaz no Brasil.