A eleição presidencial de 2022 vista pela clivagem regional: continuidade ou mudança?

Marta Mendes

Luciana Santana

Nara Salles

O que pode ocorrer nas eleições presidenciais de 2022 por estado e região, considerando o padrão eleitoral dos últimos 20 anos? Na eleição de 2002, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceu as eleições em todos os estados brasileiros, com exceção de Alagoas. A partir de 2006, contudo, as eleições para presidente passaram a ser marcadas por uma clara clivagem regional com o PT obtendo vantagem nas regiões Norte, Nordeste e nos estados de Minas Gerais e no Rio de Janeiro, e o PSDB no Centro-Oeste, Sul e estados como São Paulo e Espírito Santo. 

Em 2018, outras clivagens – de gênero, raça e renda – se sobrepuseram à regional tornando ainda mais complexo o quadro das eleições nacionais. No primeiro turno, Bolsonaro, então no PSL, venceu em 16 estados, no DF e em 23 capitais; Fernando Haddad venceu em oito dos noves estados do Nordeste e no Pará e apenas em três capitais (São Luís, Teresina e Salvador); e Ciro Gomes venceu no estado que é seu berço político, o Ceará, e na sua capital, Fortaleza. No segundo turno, Fernando Haddad venceu no Ceará e no estado de Tocantins que tinha dado a vitória a Bolsonaro no primeiro turno. Bolsonaro venceu nos outros 15 estados e no DF. Nas capitais, Haddad conseguiu vencer em mais três capitais do Nordeste, Aracaju, Recife e Fortaleza. 

O que esperar da corrida presidencial de 2022? Onde há perspectiva de mudança em relação ao observado na última eleição? Onde há tendência para continuidade?

A novidade pode vir do Sudeste

No Sudeste, região mais desenvolvida do país, o Partido dos Trabalhadores (PT) tem chances de recuperar a hegemonia em Minas Gerais e no Rio de Janeiro onde venceu todas as eleições presidenciais de 2002 a 2014. Em São Paulo, o PT saiu vencedor em 2002 com Lula e em 2014 com Dilma, mas perdeu quando concorreu com figuras importantes da política estadual, caso de Geraldo Alckmin em 2006 e José Serra em 2010, ambos filiados ao PSDB na ocasião. Este ano o PT tem chance de superar Bolsonaro (PL) na eleição presidencial e sair vitorioso na eleição para governador pela primeira vez no estado. No Espírito Santo, o PT não ganha a eleição desde 2006. Agora tem a chance de voltar a vencer já que Lula lidera as pesquisas e conta com o apoio do atual governador, Renato Casagrande (PSB), que também lidera na corrida pela reeleição. Mas, a eleição promete ser disputada. Na última pesquisa Quaest, no plano nacional, Lula liderava por 44% a 32%, mas no Sudeste Lula e Bolsonaro apareciam empatados com 37% das intenções de voto. Observou-se, também, uma redução da avaliação negativa do governo na região, de 49% para 41%, de janeiro a agosto de 2022.

2002 pode se repetir em 2018 na região Sul?

Nos três estados do Sul do país, a única e última vez em que o PT ganhou uma eleição presidencial foi em 2002, com Lula. Em 2018, Bolsonaro superou Haddad com 68,4% dos votos no Paraná, 63,2% no Rio Grande do Sul e incríveis 75,9% em Santa Catarina. Algumas pesquisas, este ano, sugerem mais equilíbrio. Na última pesquisa Quaest, no agregado da região, Lula superava Bolsonaro por 41% a 32%. Isso sinaliza a possibilidade de uma mudança significativa em relação às últimas eleições. Por outro lado, Bolsonaro tem a vantagem de contar com mais aliados e palanques nestes estados, além do apoio de lideranças do agronegócio.

O Norte: entre Lulistas e Bolsonaristas

Após a vitória de Bolsonaro nos dois turnos da eleição de 2018 em quase toda a região Norte – as exceções foram o Pará no primeiro turno e o Tocantins no segundo –observa-se uma tendência de aproximação do padrão de voto identificado entre 2006 e 2014. Nesse período, o PT venceu na maioria dos estados nas eleições presidenciais, no 1º e no 2º turno, mas foi sistematicamente derrotado em três localidades: Roraima, Acre e Rondônia. Esses estados são os locais onde Bolsonaro aparece na liderança das intenções de voto – excetuando o caso de Rondônia, que, como o Amapá e o Tocantins, não contou com a divulgação de pesquisas. No Amazonas e no Pará, territórios em que o PT venceu nos dois turnos entre 2002 e 2014, Lula lidera. 

O PT pode voltar a ter força no Centro-Oeste?

As eleições de 2022 podem representar uma oportunidade de recuperação do PT na região Centro-Oeste, onde Bolsonaro venceu o 1º e o 2º turnos nas últimas eleições presidenciais. O movimento de derrota petista na região se iniciou em 2006, com a vitória do PSDB em todos os estados e no Distrito Federal no 1º turno. Há exceções, mas, desde então, em todas as unidades territoriais da região, o PT foi derrotado pelo PSDB e, depois, pelo PSL. As projeções para 2022 ainda indicam a preferência por Jair Bolsonaro em todos os estados desta região e no Distrito Federal. No entanto, agora de modo mais competitivo com Lula, já que as pesquisas revelam diferenças mínimas, às vezes na casa dos três pontos percentuais, entre os dois candidatos. Isso acontece no Distrito Federal, no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul. Goiás aparenta manter o seu vínculo bolsonarista, já que a vantagem nas intenções de voto sobre aquelas declaradas em Lula é mais ampla. O PT, por sua vez, tem se articulado para ampliar a sua base na região. 

Nordeste: a vantagem consolidada do PT se manterá?

 

O Nordeste é a segunda região mais populosa do país e concentra 27,11% do eleitorado, além de uma expressiva bancada no Congresso Federal. Se até o início dos anos 2000 era considerada uma região eleitoralmente conservadora devido ao passado de domínio dos “coronéis” e predomínio de lideranças tradicionais de direita, isso começou a mudar após a eleição de 2002 que deu a vitória a Lula (a única exceção foi o estado de Alagoas). Em 2018 foi a única região na qual Bolsonaro não conseguiu vencer em nenhum estado e que no segundo turno deu vitória a Fernando Haddad (PT) em sua totalidade (68% dos votos para Haddad contra 32% para Bolsonaro). A maior vitória proporcional na região veio do Piauí, onde o PT teve 77% dos votos válidos. A menor foi em Alagoas, com 59,9%.  Em 2022, a história deve se repetir, é o que apontam as pesquisas eleitorais que vêm sendo realizadas nos últimos meses. Embora a avaliação negativa do presidente tenha caído de 56% para 49%, Lula continua liderando com ampla margem, 61% contra 20% de Bolsonaro

O que ainda pode mudar

A este ponto da corrida eleitoral é arriscado analisar perspectivas de mudanças e continuidades. Os partidos têm até o dia 15 de agosto para registrar suas candidaturas, o que ainda deixa espaço para novos alinhamentos e reacomodações. Com o início oficial da campanha eleitoral, no dia 16 de agosto, os candidatos terão melhores condições de testarem sua força e a de seus cabos eleitorais nos estados. Com quase metade da população avaliando o governo como ruim ou péssimo, não se sabe se os aliados de Bolsonaro nos estados irão realmente se engajar em sua campanha. 

Por outro lado, especula-se se o início do pagamento dos benefícios oriundos da PEC 15/2022, apelidada de PEC dos Auxílios, terá o efeito de melhorar a avaliação do governo e tornar o cenário mais favorável para Bolsonaro, principalmente entre os mais pobres, grupo no qual ele encontra mais dificuldades. Espera-se este efeito principalmente no Nordeste, região com maior número de famílias beneficiadas pelo vale gás e pelo Auxílio Brasil. A questão em aberto é se ele será suficiente para apagar o legado dos governos petistas na região e para garantir superioridade no Sudeste, região que concentra 42% do eleitorado apto a votar este ano.

* Marta Mendes da Rocha É professora associada do Departamento de Ciências Sociais da UFJF, onde coordena o Núcleo de Estudos sobre Política Local (NEPOL). Doutora em Ciência Política pela UFMG. Foi pesquisadora visitante na University of Texas at Austin. Webpage: martamrocha.com

* Luciana Santana é professora na Universidade Federal de Alagoas e do PPGCP da UFPI. Mestre e doutora em Ciência Política pela UFMG, com período sanduíche na Universidade de Salamanca. Líder do grupo de pesquisa: Instituições, Comportamento político e Democracia e diretora da regional Nordeste da ABCP.

* Nara Salles é pesquisadora associada ao Doxa (IESP/UERJ). Doutora em Ciência Política pelo IESP/UERJ. Foi pesquisadora visitante no WZB Social Science Center. Idealizadora e coordenadora do VotaAí (http://www.votaai.com.br/).

Discurso de ódio, liberdade de expressão e responsabilidade jurídica

Discurso de ódio, liberdade de expressão e responsabilidade jurídica

Sobreposição com discurso de fraude eleitoral pode desenhar cenário de violência com ares de caos social

Leonardo Avritizer 

Publicado no JOTA

Existe um debate em curso no Brasil sobre os limites legais à liberdade de expressão, com repercussão sobre a possibilidade de responsabilização jurídica – penal, inclusive – daqueles que professam discursos de ódio. Em recente entrevista publicada na Folha de S.Paulo, a professora da Fundação Getulio Vargas de São Paulo Clarissa Gross fez uma afirmação que reacendeu a polêmica no meio acadêmico.

Segundo a pesquisadora, para que uma fala seja criminalmente imputável “é preciso que a linguagem usada seja uma que no contexto signifique incentivo ou instigação para prática de crime e que haja contexto de probabilidade de que a fala irá levar à prática de crime”. Essa afirmação que poderia de forma genérica expressar as principais variáveis envolvidas no problema parece estar baseada em uma decisão de 1969 da Suprema Corte dos Estados Unidos, conhecida como Brandenburg v. Ohio. A pesquisadora, no entanto, ignora amplamente as discussões mais recentes sobre a mesma decisão; e parece ser incapaz de se posicionar sobre as questões concretas que envolvem as discussões sobre o discurso de ódio no Brasil hoje.

Vale a pena retomar o debate sobre liberdade de expressão e discurso de ódio nos Estados Unidos, em atenção à referência à Suprema Corte dos EUA. Desde os anos 1920 até 1960 as decisões da Suprema Corte expressam uma concepção de fundo segundo a qual toda e qualquer ideia poderia ganhar forma de incitação ao crime/violência. A jurisprudência do começo do século 20, tal como Debs v. United States ou Schemck v. United States, assumia que não havia conteúdo que não pudesse se configurar discurso de ódio, sinalizando a clara intenção de punir discursos políticos heterodoxos/alternativos, tanto de extrema direita quanto de esquerda.

Essa tendência irá se modificar nos anos 1960 quando surge o caso Brandenburg, que deve ser explicado devido à sua importância na jurisprudência sobre crimes de ódio. O caso envolve um membro da seita de extrema direita Ku Klux Klan que convenceu um repórter televiso a filmar uma reunião da Klan na qual uma das falas aventou a possibilidade de que o discurso de Clarence Brandenburg incentivava revanches contra negros e judeus. Com base nessa fala, Clarence Brandenburg foi condenado por violar a Lei Criminal Sindical do Estado de Ohio, por supostamente advogar mudanças políticas e econômicas radicais por meios criminosos ou violentos. O estatuto legal, de 1919, foi promulgado à época do chamado “first red scare” – mobilizações de esquerda nos EUA do começo do século 20 – em um contexto de repressão das opiniões divergentes às do governo.

A Suprema Corte foi acionada e reverteu a condenação, afirmando o seguinte: “(…) a garantia constitucional de liberdade de expressão e da imprensa livre não permite ao Estado proibir ou proscrever a advocacia do uso da força ou da violação da lei com exceção das situações nas quais essa advocacia está dirigida a incitar ou produzir uma ação ilegal iminente ou gera a probabilidade de um incitamento que produza tal ação”.

Em seu cerne, a decisão da Suprema Corte – que é extremamente relevante ainda hoje no que concerne às discussões brasileiras – gerou o que é conhecido na literatura como os três testes, o da advocacia, o da iminência de um ato ilegal e o da probabilidade de um ato ilegal. Sabemos que o centro da decisão da Suprema Corte no caso Brandenburg foi a crítica de que o estatuto do estado de Ohio não distinguia entre a advocacia e a iminência de um ato ilegal.

Naquela oportunidade, a SCOTUS colocou duas importantes questões posteriormente revistas em decisões supervenientes: a da proximidade (do crime de ódio em relação à incitação) e a do grau de risco (de que, de fato, o crime de ódio venha a ocorrer). Daí concluíram os ministros que “ações ilegais a serem efetivadas em algum futuro indefinido não justificam uma condenação, [ou seja], o perigo tem que ser iminente” (vide Wilson and Kiper, “Incitement in the era of populism”).

Para que se possa fazer útil a referência ao debate na SCOTUS, estabelecendo-se algum diálogo com as recentes decisões que têm sido proferidas sobre o tema pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e, em especial, pelo ministro Alexandre de Moraes, convém uma reflexão mais detida sobre os parâmetros contidos nos conceitos de perigo iminente, proximidade e probabilidade da ocorrência dos crimes de ódio.

Em primeiro lugar, é preciso colocar em perspectiva o argumento da SCOTUS sobre proximidade, que foi construído em uma era analógica, em que a transmissão televisiva (de nível local, pois se tratava de uma rede de TV do estado de Ohio, nos anos 1960) tinha alcance incomparável ao que pode ser estimado sob o domínio da web e das redes sociais. Ou seja, existe uma concepção de espaço e de tempo que mudou ao longo desses mais de 50 anos nos quais a decisão foi tomada – e isso não é desprezível.

Basta que se considere, por exemplo, que depois de ler uma informação online sobre o dono de uma pizzaria na Carolina do Norte que mantinha trabalhadores em condição análoga à escravidão um indivíduo dirigiu até lá e abriu fogo contra a loja. A notícia era falsa. (New York Times, 5/12/2016). Inúmeros elementos de conectividade, tais como a propagação dos smartphones, a redução do custo da telefonia e a ampliação da qualidade da conexão à internet, associados ao surgimento e expansão das redes sociais promovem uma ruptura com o monopólio da imprensa tradicional sobre a produção de conteúdo, o que é disruptivo. Todo e qualquer usuário, em todo lugar e a qualquer tempo se torna um agente político em potencial – essa é a medida do impacto dos discursos que protagoniza.

Particularmente, essa novidade induz uma série de atualizações da literatura, questionando, justamente, o conceito de perigo iminente mobilizado pela decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos. Recoloca-se o problema da espacialidade e da temporalidade. Na era das redes sociais, o que acontece em Ohio não fica em Ohio e o que acontece no Acre não fica no Acre.

Gross reclama o elemento contextual na caracterização do discurso de ódio, mas despreza a atualização da dimensão espaço-temporal que a web impôs às relações sociais. O presidente Jair Bolsonaro, em um evento de campanha ainda em 2018 – mais precisamente no dia 3 de setembro –, falou em fuzilar a petralhada. Bastou para que um conjunto de atos de violência política se somassem ao longo dos últimos anos.

Recentemente, a invasão de uma festa de aniversário de um militante do Partido dos Trabalhadores por um apoiador do presidente em Foz do Iguaçu (PR) resultou em um episódio emblemático de violência política, mas, se considerarmos a ortodoxia da jurisprudência da SCOTUS não encontraremos base sólida para estabelecer relação entre o discurso de ódio como incitação à violência de natureza política e o homicídio “de um guarda municipal”, tal como o presidente argumentou.

A violência política não está restrita a pessoas – eleitores ou lideranças políticas – senão que pode também ser dirigida a instituições – sedes de partidos políticos, eventos de campanha, órgãos eleitorais. A violência eleitoral é um tipo de violência política, que é um fenômeno enraizado e disseminado na política brasileira, mais intenso no nível local, de natureza econômica, envolvendo disputa pelo controle dos espaços de poder. No nível nacional, contudo, tem crescido impulsionada em boa medida pelas reiteradas manifestações do ainda presidente Jair Bolsonaro, que trata os adversários políticos como inimigos e prega, em muitas oportunidades, seu extermínio físico. A sobreposição do discurso de ódio e intolerância ao de fraude eleitoral pode vir a desenhar um cenário de violência pós-eleitoral com ares de caos social. Daí porque não apenas há crime, como também crime de responsabilidade.

Gross não é capaz de avançar, pela sua via de argumentação, na compreensão das dimensões da violência política e eleitoral. Se não por outras razões, pelo fato de que ignorou solenemente que o emissor do discurso é ninguém menos que o presidente do Brasil. Observemos novamente os Estados Unidos, onde há dados sobre o aumento exponencial dos chamados crimes de ódio ao longo do primeiro ano do governo Trump. Apesar de os demais índices de criminalidade naquele país terem sido reduzidos no mesmo período, em 2017 os EUA reportaram 7.509 crimes de ódio – um aumento de 17% em relação ao ano anterior.

Há, portanto, pelo menos duas questões que Gross ou não responde ou responde mal: a primeira diz respeito à relação entre discurso de ódio propagado por macroatores ou pessoas de centralidade política e a questão da iminência de um crime; a segunda é se é adequado pensar a probabilidade de que um crime seja cometido a partir de um discurso deixando de lado marcos temporais ou espaciais que com a internet e as redes socais deixaram de fazer sentido. Essas não são questões abstratas: o fato de um discurso de campanha no Acre gerar mais de 17 mil entradas no Google mostra que o discurso tem continuidade temporal e deixa de estar ligado à referência espacial no qual ele se colocou.

Brandenburg v. Ohio assumiu corretamente que apenas a prática de advocacia de uma ideia pode não ser suficiente para uma condenação criminal e, para tanto, estabeleceu testes espaciais e temporais: advocacia, iminência e probabilidade de um ato ilegal. No entanto, na era do Twitter e dos discursos de ódio sendo promovidos pelo mainstream do sistema político, o teste espacial e temporal tem que mudar. O que interessa saber é se um discurso realizado por um macroator político com milhões de seguidores nas redes sociais e reproduzido em dezenas ou centenas de perfis deve, de fato, ter a correlata responsabilização limitada ao espaço e ao tempo da sua produção. A se julgar pelos dados que temos de crimes de ódio e escalada da violência política, a resposta é não.

LEONARDO AVRITZER – Coordenador do INCT IDDC e do Observatório das Eleições e da Democracia. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT – EUA. Foi representante de área da Capes (2005-2011), diretor da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (1997-1998) e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2012-2014). Autor de vários livros, entre eles “O pêndulo da democracia” e “Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política”

Observatório das Eleições 2022: a democracia em jogo

Observatório das Eleições 2022: a democracia em jogo

O Brasil tem uma normatividade jurídica perfeita no que diz respeito ao processo eleitoral. Mas os ataques do presidente às urnas eletrônicas colocam a votação em um nível de incerteza

Leonardo Avritzer*

Publicado no Nexo

 

Nas democracias consolidadas, existem eleições que são mais importantes e eleições que são secundárias e, frequentemente, marcadas pelo baixo comparecimento e pelo pouco interesse do eleitor. Nas democracias em consolidação – ou, por que não dizer, em desconsolidação, como parece ser o caso brasileiro –, eleições são oportunidades centrais para correções de rumo por parte da opinião pública. Não hesito em afirmar que a eleição de 2022 é a mais importante da história do Brasil desde que eleições presidenciais diretas e secretas (com sufrágio incluindo as mulheres) tiveram lugar em 1945. 

Enumero o que está em jogo: a soberania eleitoral, o fim de uma política de agressão e violência contra as mulheres patrocinada pelo Estado, o controle da violência e de um processo de armamento da população, o retorno de uma política de controle do desmatamento da Amazônia, o retorno de uma política de produção do orçamento com transparência, o retorno de uma relação entre orçamento e políticas públicas e o fim das agressões a todas as instituições contra majoritárias, em especial, o Supremo Tribunal Federal. 

Não é pouca coisa. E, portanto, não é pouca coisa o que pretendemos observar. Observação eleitoral pode ser um ato com diferentes configurações. Este Observatório, ligado ao INCT IDDC (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação), já realizou atividades acadêmicas de observação com o objetivo principal de ajudar o eleitor a entender os processos envolvidos na decisão do voto por meio da apresentação de dados que ajudem na compreensão de padrões eleitorais anteriores. E também trabalhamos na contextualização das disputas políticas nacionais e regionais. 

Com esses objetivos, realizamos uma ampla pesquisa de opinião pública nos anos eleitorais que ganhou destaque na cobertura do jornal O Globo, em sua nova seção, Pulso. Nesta edição 2022 do Observatório das Eleições, continuamos com as mesmas intenções, agora impulsionadas pelo reconhecimento de que vivemos uma eleição completamente atípica, que ocorre num cenário de incerteza completa no campo jurídico e nas redes sociais. Permitam-me elaborar os dois aspectos.

O Brasil tem uma normatividade jurídica perfeita no que diz respeito às eleições. Diferentemente dos Estados Unidos, que não têm uma autoridade eleitoral e têm um processo eleitoral determinado por legislações estaduais sobre o voto, o Brasil conta com o Tribunal Superior Eleitoral e um dia unificado de eleição, seguido por um método de apuração eletrônico consagrado nas últimas décadas. Ainda assim, não podemos negar que os ataques do presidente às urnas eletrônicas, hoje associados a fortes críticas dos mais altos dirigentes das Forças Armadas ao processo de apuração, colocam a eleição em um nível de incerteza. Ou seja, essa eleição irá transcorrer no campo de duas disputas: a de dois candidatos a presidente e a disputa entre o presidente e o TSE acerca da produção de um resultado eleitoral legítimo e aceito pelo conjunto da população. As redes sociais serão o campo por excelência desse embate, no qual o presidente deu os primeiros passos na sua reunião com os embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho. 

Naquele momento, ele antecipou a tática que provavelmente terá forte repercussão nos próximos dois meses: lançar sem provas a desconfiança em relação ao processo eleitoral e tentar envolver diversos atores no chancelamento dessa desconfiança, sem reconhecer o resultado a ser proclamado pela autoridade eleitoral, o TSE, no dia 2 de outubro. Esses atores são as Forças Armadas que, diga-se de passagem, estão relutantes em aderir a esse jogo, apesar dos posicionamentos do ministro da Defesa, das polícias militares e de milícias digitais bolsonaristas. Nesse contexto, podemos afirmar sem dúvida que a desinformação será ampla e exigirá um grande trabalho de esclarecimento. Assim, essa eleição envolverá não apenas a produção de um resultado, mas a sua legitimação posterior em diversas arenas. O Observatório das Eleições pretende, portanto, monitorar esse debate, contribuindo com análises para ajudar a esclarecer o público em relação às particularidades do processo de apuração, à legislação vigente e a um conjunto de processos de desinformação predominantes nas redes sociais bolsonaristas.

A partir desse cenário, algumas outras questões parecem adquirir relevância nestas eleições, entre elas a questão ambiental. Antes mesmo do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, a Amazônia e sua preservação já despontavam como agenda contenciosa, dado o desmonte das estruturas de fiscalização do Ibama e os conflitos entre o presidente Jair Bolsonaro e o Inpe (Instituto de Pesquisas Espaciais) que monitora o desmatamento em tempo real. Com o assassinato de Bruno e Dom, esse conflito mudou de patamar, revelando, de fato, uma presença do crime organizado na região que precisa ser contida imediatamente. O bioma amazônico pode estar próximo do ponto de não retorno e uma política de preservação pode se tornar o ponto central da relação entre o Brasil e alguns dos nossos parceiros europeus. O Observatório pretende cobrir a eleição também sob o ponto de vista do meio ambiente, das candidaturas ligadas ao agronegócio e das eleições regionais que podem determinar novas legislaturas.

Vale a pena ainda ressaltar uma outra dimensão central desta eleição, que é a recomposição da representação legislativa. O Brasil tem um Congresso Nacional predominantemente conservador há algumas décadas, mas o Congresso eleito para a legislatura 2018-2022 foi marcado por processos de inflexão política que colocam em risco a governabilidade e a transparência. Algumas mudanças recentemente realizadas por Arthur Lira merecem destaque: o aumento das emendas parlamentares, a introdução da emenda do relator e a existência de um orçamento secreto. Conjuntamente, essas mudanças tornam o ato de governar e executar políticas públicas praticamente impossível. É necessário devolver a execução do orçamento para os ministérios-chave, como Saúde e Educação; sem esse procedimento, implementar essas políticas se tornará impossível. Além disso, a predominância de bancadas conservadoras – como a do boi, a da bala e a da bíblia – torna o processo legislativo difícil para um presidente de esquerda. Essa eleição irá mudar o panorama do Congresso, em virtude de novas regras, como as federações partidárias e a cláusula de desempenho, mas ainda não temos como saber qual será a bancada que o novo presidente irá encarar no Congresso. O Observatório vai discutir essas mudanças e, se possível, apresentar dados inéditos sobre candidaturas estaduais.

Ainda em consideração ao cenário nacional desafiador, mais uma sombra paira sobre o processo eleitoral: a da violência desencadeada por uma eleição marcada pela radicalização dos sentimentos e emoções. As últimas semanas estão sendo marcadas por episódios de violência na campanha política. Depois de situações lamentáveis como o do drone em Uberlândia e o lançamento de fezes no comício do ex-presidente Lula na Cinelândia, tivemos o primeiro morto em Foz do Iguaçu, em um episódio que expressa a disseminação da violência no campo societário. Assim, teremos uma campanha marcada pela radicalização política, pela emoção e pela incerteza provocada por diversos ataques à democracia e ao processo eleitoral.

Nesse contexto, o objetivo do nosso Observatório será também um desafio: informar o eleitor de maneira equilibrada sobre cada uma das dimensões eleitorais, tentando cumprir o papel cívico de gerar informação confiável em meio a uma conjuntura turbulenta na qual esse objetivo parece ter sido secundarizado por muitos. Acreditamos que a disseminação de análise crítica e de esclarecimentos importantes em relação a análises enviesadas contribuirá para o fortalecimento da nossa democracia.

 

Leonardo Avritzer é coordenador do INCT IDDC e do Observatório das Eleições. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT (EUA). Foi representante de área da Capes, diretor da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) e presidente da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política). Autor de vários livros, entre eles “O Pêndulo da Democracia no Brasil” e “Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrátio e Degradação Política”.