Priscila Delgado de Carvalho*

Publicado no Mídia Ninja.

 

Nas democracias, o voto é uma opção de cada cidadão e cidadã, individualmente, e os partidos são a forma institucionalizada de agregar suas preferências.

 

A política, porém, é marcada pela associação de pessoas em grupos para defender seus interesses e paixões, promovendo debates, evidenciando posicionamentos e pressionando o sistema político desde a sociedade civil. É comum que haja padrões na articulação desses grupos – por vezes formalizados em associações, por vezes reunidos em coletivos que se agregam temporariamente para responder a temas candentes. Também pode ocorrer que tais padrões se alterem em determinados períodos, e é isso que, parece, estamos presenciando.

 

Para começar, um exemplo muito recente. No Brasil de 2022, vemos articulações em defesa da democracia, com a formação de grupos e a publicação de cartas. Trata-se de agrupamentos informais, puxados por pessoas com visibilidade pública ou por grupos pré-existentes, buscando angariar aliados, influenciar a opinião pública e colocar em pauta as preocupações com o respeito às eleições.

 

Olhar para esses agrupamentos passa por entender quem são as pessoas que articulam cada um deles, que tipo de estratégias e formas de se expressar publicamente adotam, com quais iniciativas anteriores dialogam, com quem estabelecem alianças e como tais alianças os moldam; e se irão dissolver-se após a eleição, ou continuar ativos – perseguindo as mesmas agendas, ou novas. Acompanhar atores coletivos a partir desses questionamentos é o que pretendemos fazer nesta editoria, mas há outros formatos no radar.

Novos padrões de associação

Também estamos interessadas em observar como grupos já estabelecidos vão atuar para impactar debates eleitorais: terão expressão no período sindicatos patronais, do campo e da cidade? E os sindicatos de trabalhadores e centrais sindicais? 

O pano de fundo, para este tema, é que passamos recentemente por uma alteração no padrão de ação coletiva no Brasil. Na década de 1960, em todo o mundo, emergiram movimentos sociais com pautas comportamentais, ambientais e de direitos civis. Na América Latina, essa onda acabou tendo sua expressão relacionada também à defesa da democracia no contexto de embates contra os regimes militares. Houve aqui experimentação de práticas e formas de sociabilidade, aliadas a demandas por liberdades individuais e políticas. Nesse caldo, surgiram movimentos populares nas periferias das cidades e nas áreas rurais, e também movimentos de mulheres e de pessoas negras. Fortaleceu-se o movimento estudantil e o sindicalismo se renovou, aproximando-se do formato de movimento. Grupos organizados foram centrais para a construção da Nova República.

 

Em interessante pesquisa da professora Evelina Dagnino sobre como a democracia era entendida por diversos grupos no Brasil dos anos 1990, foram entrevistadas pessoas com experiência de participação em movimentos sociais de vários perfis (urbanos, ecológicos, de mulheres e negros), sindicatos de trabalhadores e de classe média, associações empresariais. Podemos afirmar que, até o início dos anos 2010, esse perfil associativo manteve-se, possivelmente com a expansão da relevância de organizações não governamentais. Porém, realizar uma pesquisa semelhante no Brasil contemporâneo exigiria incluir outros grupos. Alguns deles que já existiam desde a redemocratização – como grupos assistenciais de diversos perfis, porém ganharam nova visibilidade nos anos recentes. Outros só se formaram recentemente: grupos religiosos evangélicos a favor de pautas conservadoras ou em defesa de agendas progressistas, grupos conservadores de direita com diferentes intensidades ideológicas. Ou, ainda, trabalhadores organizados não em sindicatos, mas em articulações de caminhoneiros, de entregadores de aplicativos. E, por fim, mas não menos impactantes, há grupos que defendem expressamente o fim da democracia, algo praticamente impensável no início da Nova República.

Protestos

De forma geral, não apenas o cenário associativo tem se transformado, mas também o cenário de protestos. Analisando atores mobilizados e suas reivindicações a partir de notícias publicadas por jornal de circulação nacional, as pesquisadoras Luciana Tatagiba e Andreia Galvão encontraram, a partir dos protestos massivos de 2013, um novo padrão de mobilização que combina duas dinâmicas: a polarização política e a heterogeneização de atores e reivindicações. Conflitos clássicos, com aqueles relativos a classes sociais, seguem relevantes e atores como os sindicatos são centrais na organização de atos e protestos; porém, passam a conviver com outras agendas relativas à defesa de identidades políticas – mulheres, negros, LGBTQIA+, entre outros.

O tema dos protestos se atualiza em período eleitoral: haverá protestos em 2022? Que formato terão e por quem serão organizados? Quais temas que emergirão durante as campanhas e levarão grupos a se posicionar: possivelmente o aborto já se delineia como um deles, mas haverá outros? 

 

Aparentemente, será mantido o padrão de polarização, com as ruas ocupadas por linguagens, cores e bandeiras concorrentes. Serão esses protestos semelhantes ou diferentes dos que vimos em 2018? Que lugar ocuparão as mulheres? Que locais cada grupo escolherá para se manifestar, buscando ativar quais cadeias de sentidos e símbolos? Em cada um desses protestos, qual será o papel de grupos tradicionalmente organizados, como sindicatos e centrais sindicais, movimentos sociais populares, frentes – serão retomadas a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo, que foram atores coletivos importantes a partir de 2016?

 

Candidaturas coletivas

 

Grupos emergiram na sociedade civil tentando influenciar o perfil e a qualidade do debate político desde as eleições de 2016. Há institutos e ONGs formando potenciais candidatos, feministas buscando pautar suas preocupações em candidatas de diferentes colorações ideológicas, e houve a emergência de candidaturas coletivas. Segue em aberto a questão sobre se essas iniciativas vão manter-se, reinventar-se, ou desaparecer neste processo eleitoral. 

Cada um desses temas é uma porta de entrada para a questão dos grupos na política. Sua presença gera tensões entre teóricos há tempos: uma das expressões conhecidas está nos textos dos Federalistas norte-americanos, preocupados com encontrar formas de conter a concentração de poder em grupos pequenos mas capazes de influenciar desproporcionalmente a política e desestabilizar o jogo democrático. Sendo indesejável eliminar a liberdade da organização em grupos, a solução proposta no Federalista n. 10 foi a de controlar seus efeitos, seja pela eleição de representantes, pelo papel de regulação dos interesses exercidos pelo legislativo, seja pela garantia da existência de uma variedade de grupos, capazes de evitar que um deles se torne demasiado influente. Mais de 100 anos depois, a quantidade de temas relacionados com a articulação de pessoas em coletivos mostra que os temas em disputa e o perfil dos grupos podem ter mudado imensamente, mas a ação coletiva continua premente na política contemporânea.

 

*  Pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Inova Juntos). Pesquisadora do INCT IDDC. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em Ciência Política pela UFMG.