Leonardo Avritzer *

Francisco W.Kerche**

Publicado no Pulso

Diz um senso comum que instituições fortes em uma democracia são aquelas que passam despercebidas, isto é, elas existem para desempenhar funções pontuais na ordem democrática e o fazem a despeito de pressões políticas. Há anos observamos, no Brasil, um processo diferente que expressa bem as mazelas pelas quais a nossa democracia vem passando: instituições democráticas são defendidas diuturnamente porque, na verdade, foram instabilizadas pelo ataque patrocinado pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores. É assim que devemos analisar a nova centralidade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na democracia brasileira.

O TSE tem uma trajetória iniciada com o Código Eleitoral de 1932, que gerou práticas vivas até hoje, como a participação de cidadãos na organização das eleições e, até recentemente, de apuração dos votos. Mas o processo que define a centralidade do TSE, tal como o conhecemos hoje, foi o aumento das prerrogativas do poder Judiciário e do Supremo Tribunal Federal (STF), em especial as previstas pela Constituição de 1988.

Na mesma medida em que o STF concentrou prerrogativas, especialmente em relação ao sistema político, o TSE passou a suspender e a cassar mandatos estabelecendo uma trajetória de forte ativismo judicial nessa área. Esse é o motivo pelo qual, ao longo do governo Bolsonaro, o Judiciário foi se tornando o principal alvo das manifestações antidemocráticas do presidente até que, no início deste ano, elas passaram a se concentrar na Corte eleitoral. Hoje a disputa política centra-se de tal maneira no TSE que, na primeira semana das eleições, a posse do novo presidente tornou-se o principal fato político.

A posse de Alexandre de Moraes na presidência do TSE atraiu o conjunto do sistema político. Cabe perguntarmos por quê. Temos duas explicações: a centralidade adquirida pela instituição no processo político, em especial na disputa entre direita e esquerda no Brasil; e a centralidade que Moraes assumiu nessa disputa.

Desconfiança não é nova

Abordando o primeiro ponto, é possível perceber que, desde o final da campanha de 2018, Bolsonaro iniciou um processo de ataques à Justiça Eleitoral que gerou desconfiança. Pesquisa realizada pelo INCT em 2018 mostrou que 44% dos eleitores já manifestavam alguma desconfiança em relação à apuração, número que permaneceu praticamente estável nos últimos quatro anos, apesar dos ataques do bolsonarismo às urnas eletrônicas. Faltava, portanto, um momento no qual, de forma pública, Bolsonaro ouvisse os argumentos a favor das urnas eletrônicas e da credibilidade do sistema. A posse de Alexandre de Moraes tornou-se esse momento.

O ministro foi indicado ao STF pelo ex-presidente Michel Temer depois de uma trajetória na segurança pública e no Ministério da Justiça. Sua indicação foi recebida, inicialmente, com baixas expectativas. Sua mudança de posição na conjuntura iniciou-se com o seu engajamento durante a presidência de Dias Toffoli no inquérito das fake news. Esse inquérito, independentemente da forma como foi aberto, apontou em uma direção relevante: a de que o presidente não pode atacar impunemente as instituições judiciais, portanto, aqueles que procuraram reverberar esses ataques nas redes sociais poderiam ser processados. Desafiado por alguns youtubers como Sara Winter, Allan dos Santos e Zé Trovão, Moraes prevaleceu e conseguiu se colocar na linha de frente da defesa das instituições judiciais.

O evento central que alçou Moraes ao status de maior rival de Bolsonaro foi o 7 de setembro de 2021. Naquele momento, o presidente tentou organizar manifestações de rua em Brasília e São Paulo contra o STF, mas não conseguiu mobilizar as multidões na escala que ele imaginava, tendo sido obrigado a recuar alguns dias depois. O acordo selado entre Bolsonaro e Moraes possibilitou que o ministro convidasse o presidente para a sua posse, gerando a suposição de um de novo acordo entre os dois e incentivando o presidente e seus ministros a comparecerem à posse. No entanto, o que se viu foi algo muito diferente: a cerimônia serviu para comprometer Bolsonaro com a legitimidade do processo eleitoral e, ao mesmo tempo, desmoralizá-lo e desmoralizar os seus argumentos contra a urna eletrônica, como mostram os dados abaixo, que foram extraídos a partir de monitoramento das redes sociais feito pela equipe do Observatório das Eleições.

O gráfico abaixo aponta para dois fenômenos importantes nas redes sociais. Em primeiro lugar, mostra um engajamento superior do campo lulista na questão do TSE; em segundo, que o campo bolsonarista, mesmo tendo mais ativistas digitais, não conseguiu se diferenciar em relação à ida do presidente ao TSE e à posse.

 

2 de 2 Infográfico mostra vantagem lulista nas redes sobre a posse de Alexandre de Moraes no TSE — Foto: Monitoramento de redes sociais do Observatório das Eleições

Infográfico mostra vantagem lulista nas redes sobre a posse de Alexandre de Moraes no TSE — Foto: Monitoramento de redes sociais do Observatório das Eleições

Uma outra questão muito importante no comportamento das redes sociais nesta semana foi que todos os engajamentos, tanto no campo lulista quanto no bolsonarista, se deram em torno do presidente. Ou seja, a sua desmoralização na posse de Moraes foi um dos temas principais das redes, com mais de 21 mil postagens (entre os dias 15 e 17 de agosto) e cerca de 120 mil retuítes. Assim, de fato, vimos que o bolsonarismo não conseguiu criar uma narrativa própria contra o TSE ou o seu presidente ao longo da semana, tendo sofrido uma derrota importante nessa disputa de narrativas que, com certeza, ainda não chegou ao final.

Podemos supor que embates e estranhamentos entre Moraes e Bolsonaro continuarão a ocorrer e devem se repetir no 7 de setembro. E podemos supor também que a centralidade do TSE na conjuntura irá continuar, pelo menos, até a eleição e que os dois protagonistas desse enfrentamento serão os dois. O interessante é que Moraes parece ter descoberto a chave do enfrentamento com Bolsonaro: chamá-lo para o campo institucional, retirando-o do seu próprio campo, as redes sociais e os blogueiros. Essa parece ser a estratégia exitosa que a posse de Moraes consolidou e que deverá se repetir nas próximas semanas.

*Leonardo Avritzer é Coordenador do INCT/IDDC e do Observatório das Eleições. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT/EUA. Foi representante de área da Capes, diretor da Anpocs e presidente da ABCP. Francisco W. Kerche é mestrando em sociologia na UFRJ e consultor em análise de dados no Greenpeace Brasil