Carlos Ranulfo Melo*

Em declaração recente, o ministro Dias Toffoli taxou de suicidas os membros de um seleto grupo de empresários que se posicionou a favor de uma ruptura institucional no caso de uma vitória de Lula na eleição presidencial.  Talvez não seja o caso. O mais correto seria dizer que os digníssimos senhores vislumbravam que seus interesses estariam bem-posicionados estando ao lado dos golpistas. É claro que caberia alertar, como pretendeu o ministro Toffoli, sobre os deletérios efeitos que um golpe teria sobre a economia brasileira. Mas isso seria exigir demais do tosco raciocínio da turma diretamente envolvida na questão.

O episódio ajuda a explorar um ponto mais delicado – o compromisso democrático da elite brasileira. Uma coisa é certa: uma democracia não se faz, ou se mantém, sem democratas. Para que as coisas fiquem claras desde o início, um democrata é aqui tratado como aquele que possui uma preferência normativa pela democracia. Recorrendo a Scott Mainwaring e Anibal Pérez-Liñan [Democracies and dictatorships in Latin America – emergence, survival and fall] agentes políticos que possuem tal preferência estão dispostos a aceitar perdas no que se refere aos resultados das disputas políticas desde que se preserve ou estabeleça um regime democrático. Um comportamento desse tipo facilita a tolerância para com as falhas do regime e a aceitação do dissenso em relação a outros agentes.

Isso não significa que o surgimento ou a manutenção de uma democracia exija uma “cultura democrática” amplamente disseminada. Não existem casos de países onde uma cultura deste tipo tenha se firmado antes de iniciada a trajetória até a democracia. Além disso, existe farta evidência científica a confirmar que as crenças políticas da maioria das pessoas tendem a ser pouco consistentes. Mesmo quando os entrevistados em pesquisas de opinião afirmam ter preferência por regimes democráticos fica sempre a dúvida: o que eles entendem por democracia quando respondem à pergunta? Com alguma segurança se pode dizer que as pessoas preferem eleger seus governantes a não o fazer. Mas a partir daí cabe muita coisa: é possível, por exemplo, que elas considerem que seu candidato, uma vez eleito, possa utilizar o poder para contornar ou anular os limites legais e/ou constitucionais sobre seu governo.

A existência de uma preferência normativa torna-se crucial para a democracia quando o foco se dirige ao reduzido número de pessoas que, de uma forma ou de outra, se envolve com a atividade política. E isso porque é correto supor que tais pessoas possuem sistemas de crenças mais elaborados, tendem a pautar suas ações por tais crenças e a ter maior influência sobre os eventos políticos – inclusive aqueles que podem afetar a estabilidade de um regime democrático.

Por sua vez, preferências normativas pela democracia são submetidas a teste em contextos de radicalização. Em tais situações, os agentes políticos podem ser levados a assumir posturas extremas e a adotar, ainda nos termos de Mainwaring e Pérez-Liñan, um comportamento intransigente e impaciente na busca de suas preferências.

O impeachment de Dilma foi um bom exemplo do que se pretende dizer. Ali esteve em curso uma estratégia que combinava o bloqueio sistemático ao governo eleito com a exploração das prerrogativas institucionais até o seu limite com o objetivo de derrotar, quem sabe de forma permanente, o PT. Pedaladas fiscais foram transformadas em crime de responsabilidade. A comparação é elucidativa: se diante de Rousseff valeu a máxima “aos inimigos, a lei”, no atual governo o Presidente da República conta com amigos que, zelosamente, o protegem dessa mesma lei mesmo diante de denúncias incomensuravelmente mais graves.

Quando eleito em 2018, Bolsonaro não era um desconhecido para as pessoas e os setores sociais envolvidos com a atividade política. Tanto sua trajetória como deputado, como sua campanha presidencial, se encaixavam com perfeição nos indicadores de comportamento autoritário elencados por Levitsky e Ziblatt em Como as democracias morrem: rejeição das regras democráticas, negação da legitimidade dos adversários, tolerância ou encorajamento à violência e propensão a restringir liberdades civis de oponentes e/ou da mídia.

Foi, portanto, com pleno conhecimento de causa que boa parcela da elite brasileira viu em Bolsonaro uma oportunidade de ouro. A expectativa era que consolidar uma guinada à direita livraria o país de governos progressistas por um bom tempo. Nesse interim, o país avançaria na direção de uma reforma ultraliberal, fazendo retroceder os avanços sociais acumulados desde a redemocratização. Reafirmaria os valores tradicionais sobre família e sexualidade. Acabaria com o mimimi dos direitos humanos, armaria os cidadãos de bem e autorizaria a matança da “bandidagem”. Reduziria o espaço, ou tiraria de cena, os que se preocupam com a preservação do meio ambiente. Jogaria no lixo a corrupção que emporcalha a política. Fosse qual fosse o interesse em jogo, ele se sobrepunha à necessidade de preservar a democracia e tornava sem importância a eleição de um notório candidato a ditador.

Nesses quase quatro anos de mandato, Bolsonaro se esmerou em demonstrar seu desprezo pela democracia. Sempre afirmando jogar “dentro das quatro linhas da Constituição”, insistiu em traçar as linhas a seu feitio. Mentiu e atacou instituições o tempo todo. Instilou o ódio entre seus apoiadores e depois defendeu sua liberdade de expressão. Não obstante, seu apoio entre setores da elite brasileira é considerável. Bolsonaro cresce nas pesquisas com o aumento do nível de renda e escolaridade dos entrevistados. Tem seus mais altos índices de apoio entre  os empresários.

O grupo de senhores colhidos trocando figurinhas sobre um golpe de estado expressa de forma exemplar o comportamento autoritário. Ou o seu time ganha o jogo ou eles levam a bola embora, fecham o campinho e prendem os inimigos. Não sabemos quantos grupos desse tipo existem, qual seu raio de ação e sua capacidade de tumultuar o ambiente.

  Sem dúvida, a iniciativa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), articulando uma carta em defesa da democracia cumpriu importante papel na demarcação em relação aos arroubos autoritários de Bolsonaro. Mas a expressividade dos apoios recebidos pela carta, com destaque para a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), não chega a esconder a eloquência de inúmeras ausências. Entre os paulistas, pontua o Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp). Federações das Indústrias de peso, como a de Minas Gerais (FIEMG) e do Rio de Janeiro (Fierj), tampouco deram as caras. A primeira, é bom lembrar, em setembro de 2021, atacou o STF em resposta aos inquéritos abertos para a apuração de fake news. Igualmente notáveis foram as ausências das Confederações da Indústria (CNI), do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e dos Transportes (CNT), para não mencionar ainda a poderosa Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Não existem empresários suicidas. Tanto os abertamente golpistas, como as notórias ausências acima mencionadas sabem muito bem o que estão fazendo. Conhecem o seu gado, para usar um termo em voga. Como esperar que tenham algum compromisso normativo com a democracia no país?

 

*Doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.