Carlos Ranulfo Melo

Publicado no JOTA

 

A mais expressiva das semelhanças entre o fascismo e o populismo de extrema direita, onde se enquadra o bolsonarismo, é o uso sistemático da violência como arma na luta política. Sob o fascismo, hordas de milicianos, devidamente identificados e munidos de porretes, saíam às ruas, sob o olhar complacente das forças policiais e espancavam judeus, comunistas, social-democratas, gays e qualquer um que se colocasse em seu caminho. Assim fizeram até instituir regimes onde qualquer resistência, que não fosse clandestina, era literalmente impossível.`

O Brasil não chegou a isso, mas o terreno tem sido preparado há alguns anos.  Das inúmeras agressões verbais a indivíduos e/ou instituições até as regras que facilitaram a compra e o uso de armas no país, Bolsonaro vem sistematicamente incentivando o uso da violência e liberando o que o Brasil tem de pior. Digo liberando porque a barbárie, em suas diversas manifestações, sempre esteve por aqui – basta lembrar que a escravidão brasileira foi a mais longeva do mundo ocidental. Mas se depois da redemocratização ela mantinha-se nos subterrâneos, nos dias de hoje bate no peito e sai às ruas. 

Parcela dos bolsonaristas está armada até os dentes. Devido às novas regras estabelecidas pelo atual governo, cada pessoa pode possuir até seis armas e, segundo o Instituto Sou da Paz, desde 2019 cerca de 1.300 delas são compradas por civis a cada dia. Pesquisa da Quaest mostra que 88% dos que declaram a intenção de votar em Lula são contrários a ações que facilitem o armamento, mas o índice se reduz à metade (45%) entre os adeptos de Bolsonaro. Mostra ainda que, entre 2019 e 2022, nada menos que 96% dos novos registros de armas foram feitos por homens. Já as mulheres, em sua esmagadora maioria (82%) discordam da atual política armamentista. Como que vivendo em uma espécie de realidade paralela, entre a Lei Maria da Penha e uma pistola, o presidente da República sugere às mulheres que prefiram a segunda. 

No Estado de Direito os indivíduos contam com a Constituição e as leis para se proteger de erros e abusos do Estado. Como Bolsonaro não acredita nisso, prefere que os por ele qualificados como cidadãos de bem mantenham-se armados contra ações “tirânicas” do Estado. Obviamente, o critério para definir o que seria uma ação tirânica fica a cargo dos tais senhores de bem que, por sua vez, já foram devidamente alertados para o risco de que a eleição seja definida em uma “sala secreta”, onde teriam acesso ministros seguidamente enxovalhados pelo presidente da República.

Bolsonaro sabe que nunca houve nem haverá fraude. Apavorado ante a possibilidade de derrota nas urnas, sua estratégia é manter seu rebanho sob constante pressão: igrejas serão fechadas, bandidos serão soltos e o comunismo vingará destruindo a família e a pátria amada. Assim municiados, os cidadãos de bem bolsonaristas se veem hoje diante de uma espécie de batalha final. Eles precisam defender sua liberdade e salvar o país. É tudo ou nada.

Foi tendo isso em mente que, em Uberlândia, a barbárie bolsonarista jogou material fétido sobre petistas. No Rio de Janeiro uma bomba caseira foi lançada em evento da campanha de Lula e por duas vezes grupos armados impediram atividades da campanha de rua de Marcelo Freixo. Em Foz do Iguaçu foi a vez das balas falarem mais alto no assassinato do petista Marcelo Arruda. E na cidade de Confresa, no Mato Grosso, um apoiador de Bolsonaro matou a facadas um eleitor de Lula após discussão política. 

Tudo isso está autorizado e vem sendo reafirmado. Em junho deste ano, Flávio Bolsonaro afirmou que não seria possível impedir um levante de apoiadores revoltados com o resultado das eleições. Mais grave ainda, Eduardo Bolsonaro, há poucos dias disse que “quem comprou arma legalizada tem que se tornar um voluntário do presidente”. Acrescentando um toque de inocência à declaração, o deputado do PL conclamou os voluntários a buscarem material de campanha. Mas se a preocupação fosse com a divulgação da candidatura do pai, por que focar nos apoiadores armados e não no conjunto dos que desejam a reeleição de Bolsonaro? 

Saudade de quando se podia dizer que a eleição era uma “festa cívica”. Ou quando o maior problema de segurança era com a boca de urna. Nesses tempos, campanhas de rua e comícios podiam ser feitos sem outra preocupação que não fosse conquistar eleitores. Agora é preciso evitar certos locais, redobrar a segurança e cancelar eventos a depender do tom das ameaças.

A violência tende a aumentar à medida que a eleição caminha para a reta final. Temendo o que possa acontecer, cresce o número de estados que pedem reforço na segurança. No Rio de Janeiro, o TRE solicitou apoio para todos os 92 municípios. Tribunais eleitorais estão treinando mesários para lidar com conflitos. Prevendo o risco de aumento de violência, o ministro Edson Fachin suspendeu parte do decreto presidencial que facilita posse e uso de armas. De todo modo, não será nenhuma surpresa se grupos bolsonaristas saírem às ruas para constranger eleitores no dia 2 de outubro.

A democracia é um regime no qual indivíduos livres e iguais em direito decidem quem vai governar, e onde os governos, legitimamente eleitos, têm que atuar dentro de limites que não foram por eles estabelecidos. Nesse tipo de regime, as disputas tendem a se desenvolver como um jogo onde não há quem leve tudo e deixe o(s) outro(s) sem nada. Eleições competitivas conferem um determinado grau de incerteza quanto aos resultados e a periodicidade das disputas acena com a possibilidade real de alternância. A quem perde, resta fazer oposição, esperar e se preparar para a próxima. Por isso a democracia é o único tipo de regime que permite que os conflitos que atravessam a sociedade sejam resolvidos de forma pacífica.  Nas palavras de Adam Przeworski, votos são pedras de papel (“paper stones”). 

Mas os bolsonaristas não acreditam em nada nisso. E uma boa parcela deles deve se sentir representada por recente declaração de um deputado do PL no Ceará:“se a gente não ganhar nas urnas (…) nós vamos ganhar na bala”.

 

*Carlos Ranulfo Melo é doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.