Carlos Ranulfo Melo

Publicado no Jota

 

Uma das grandes contribuições da democracia à humanidade foi criar as condições para que os conflitos que atravessam a sociedade sejam resolvidos de forma pacífica. Para que isso aconteça, é preciso compromisso com regras estabelecidas em processos livres e justos, além de disposição para negociação e cooperação. Em contextos de polarização, no entanto, isso pode tornar-se muito difícil.

Giovanni Sartori, em seu clássico estudo sobre o tema (Partidos e Sistemas Partidários), caracterizava os processos de polarização com base na capacidade dos partidos situados nos extremos do espectro ideológico imprimirem uma dinâmica centrífuga ao processo político, desidratando dessa maneira as alternativas colocadas ao centro. Nos dias de hoje, ao se analisar a polarização, a atenção não se volta exclusivamente aos partidos. É para a sociedade que se olha.

Um país entra em um processo de polarização quando as pessoas passam a alinhar suas preferências sobre as mais diversas questões a partir da redução das questões sociais e políticas a uma única dimensão, seja ela expressa em termos de esquerda/direita, religião, etnia, ou simplesmente como um confronto entre “nós” e “eles”. 

À medida que isso ocorre, ou seja, que as preferências se superpõem, a sociedade vê-se dividida entre grupos relativamente homogêneos e distantes entre si. A multidimensionalidade da esfera pública ameaça entrar em colapso e com isso a diversidade que alimenta a democracia. O passo seguinte é o aumento da hostilidade entre os diferentes grupos.

A polarização é hoje um fenômeno mundial, fortemente relacionada ao crescimento do populismo de direita. Ainda que possua raízes na sociedade, ela é alimentada e potencializada por um discurso que dirige sua intolerância ao multiculturalismo, à diversidade social e às instituições da democracia liberal. É, portanto, caracterizada por forte assimetria em sua origem. Por isso, ao crescimento do populismo de direita não corresponde, na grande maioria dos casos, a emergência de um populismo de esquerda, mas um movimento de defesa da democracia.

No Brasil, a eleição de 2018 foi polarizada a partir do surgimento de um candidato de extrema direita.  Seguindo a receita dos autocratas modernos, Bolsonaro conseguiu traduzir as tensões latentes no país como se os eleitores estivessem diante de uma escolha entre um país ordeiro, de valores cristãos e sem corrupção ( o “nós”), e a velha política (a “deles”), que estaria colocando tudo isso em risco. A partir de então começou a ser traçada a linha, tão artificial quanto qualquer fake news, que dividiu o país em duas partes.

A assimetria foi evidente. Em estudo baseado em survey, Fuks e Marques (Afeto ou ideologia: medindo a polarização no Brasil) mostraram que a polarização na eleição de 2018 foi predominantemente afetiva, relativa a sentimentos de afeição/desafeição e não a diferenças programáticas. E, enquanto os eleitores de Bolsonaro situavam-se claramente à direita, os que haviam votado em Haddad assumiam posições próximas ao centro – refletindo a inexistência de um polo tensionando a disputa em direção à esquerda. 

Na atual eleição, o “nós” e “eles” continua sendo uma fabulação emanada a partir da extrema direita. Para tentar vencer, Bolsonaro e companhia criaram uma ficção – os comunistas vão tomar o poder, nossa bandeira será vermelha, as igrejas serão fechadas, os bandidos soltos e a família destruída. E, por incrível que pareça, temos milhões de brasileiros que acreditam em tudo isso.

Diante disso, torna-se inevitável que outros tantos milhões passem a olhar com estranheza os seguidores de Bolsonaro – de onde surgiu essa gente? O sentimento passa a ser o de que existe um muro a separar esses tantos milhões daqueles que ostentam um adesivo com o número 22 ou uma bandeirinha do Brasil tremulando no carro. 

Acontece que nessa eleição, se comparada a de 2018, o muro de fato ficou mais alto. E a razão é simples: um eventual segundo mandato de Bolsonaro constitui uma ameaça real à democracia. Não estamos apenas diante de palavrório usual em campanha eleitoral. Estamos perante comportamentos fartamente anunciados. Os sinais são tão evidentes que Bolsonaro tratou de desconversar sobre a ampliação do STF. Mas os outros tantos milhões, esses que se indignaram com as abjetas palavras da senhora Damares sobre o abuso sexual de crianças, já sabem que não se pode acreditar em nada do que diga o atual presidente.

Derrotar Bolsonaro não é uma tarefa da esquerda. A esquerda sequer tem força para tanto. Por isso, ao centro e a todo vapor. Derrotar Bolsonaro é tarefa de todos aqueles que consideram essencial viver em uma democracia, sejam eles de esquerda, centro ou direita, chamem-se Boulos, Tebet ou Amoedo. Se uma ampla frente não foi possível em 2018 ou no primeiro turno deste ano, ela está se concretizando no segundo. E em consonância com essa convergência cabe à campanha de Lula reconhecer, em alto e bom som, que o próximo governo não será do PT. O que está em jogo não é se vai ou não “dar PT”. O decisivo é saber se vai “dar democracia”. 

Governar depois desses quatro anos de destruição deliberada não será fácil, disso sabemos todos. Haverá urgência de retomar um crescimento associado à inclusão social e econômica. Será preciso retomar políticas públicas e reestruturar instrumentos para garanti-las nas mais diversas áreas. Mas os desafios ficarão ainda maiores se não for desarmada a bomba da radicalização. Também por isso, ao centro e a todo vapor. Não se enfrenta um movimento de extrema direita aglutinando forças à esquerda. É a partir do centro que se torna possível dialogar com forças políticas e setores sociais que, por uma razão ou outra, se mantém na órbita do ex-capitão, mas que dele podem se descolar. Uma vitória de Lula não provocará, é óbvio, o desaparecimento do bolsonarismo. Mas como expressão de uma ampla frente democrática permitirá que a retórica delirante que o caracteriza seja gradualmente isolada.

Depois do impeachment de Dilma, da estrondosa derrota eleitoral na eleição municipal de 2016, dos escândalos na Petrobrás, da prisão de Lula, não deixa de ser irônico que caiba ao PT liderar um movimento dessa ordem. O partido mostra sua força, mas não deve deixar que o sucesso, em caso de vitória, lhe suba à cabeça. Os próximos quatro anos servirão para rearrumar a casa, isolar os setores que apostam no retrocesso e superar a crise iniciada após 2014. O que importa é que em 2026, quando esquerda, centro e direita estiverem novamente apresentando seus candidatos, o Brasil mantenha-se democrático. 

 

Carlos Ranulfo Melo é doutor em ciência política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de “Retirando as cadeiras do lugar: migração partidária na Câmara dos Deputados”, coautor de “Governabilidade e representação política na América do Sul” e coeditor de “La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI”. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.