Eleição no Rio Grande do Sul: nada de muito novo no front

Eleição no Rio Grande do Sul: nada de muito novo no front

Paulo Peres

Congresso em Foco

 

As votações do primeiro turno no Rio Grande do Sul foram surpreendentes. Como mostram os dados da Tabela 1, as duas últimas pesquisas realizadas antes do comparecimento às urnas fotografaram Eduardo Leite (PSDB) muito à frente do segundo colocado, Onyx Lorenzoni (PL). Edegar Pretto (PT), quase fora do enquadramento das lentes, aparecia num distante terceiro lugar, completamente fora do páreo. Os votos digitados nas tão malhadas urnas eletrônicas, entretanto, registram uma paisagem marcadamente destoante das pesquisas.

 

Já durante a apuração, os tucanos gaúchos viram a sua plumagem se eriçar mais e mais a cada nova contabilização. Lorenzoni, para assombro geral, cruzou a linha de chegada em primeiro lugar, com uma votação muito acima do previsto e numa folgada distância do segundo colocado. Pasmos, os riograndenses ainda assistiram a acirrada competição, palmo a palmo, voto a voto, pela outra vaga ao segundo turno. Leite, até então o pole-position nas pesquisas, quase viu as suas chances de seguir no Palácio do Piratini derraparem na última curva eleitoral – acossado pelo expressivo desempenho da candidatura petista, chegou na dianteira por uma diferença de pouco mais de inacreditáveis dois mil votos. É fato: as estimativas das pesquisas eleitorais mostraram-se substantivamente equivocadas.
Tabela 1. Pesquisas de Intenção de Voto X Resultado Eleitoral*

* Margens de erro: RTBD [3%] e IPEC [3%].

**Os dados referentes às demais candidaturas estão excluídos, por isso o total não soma 100%.

***Real Time Big Data.

**** Bancos/Nulos/Não souberam responder/Não quiseram responder.

***** Somatória dos votos em branco e nulos apurados.

 

Não obstante, embora surpreendente, o resultado confirmou as expectativas que tinham sido delineadas no artigo anterior. Em primeiro lugar, em paralelo com as intenções de voto deste ano, o padrão histórico-eleitoral do estado apontava para a maior probabilidade de haver segundo turno. Isto se confirmou. Em segundo lugar, (a) a persistência da centro-direita como a principal força política nas disputas para governador (MDB e PSDB), somada (b) ao gradativo declínio eleitoral da centro-esquerda (PT) desde 2010 e (c) ao crescimento da direita desde 2018, davam pistas de que o conteúdo ideológico da recorrente bipolaridade assumiria uma nova configuração: centro-direita versus direita. Antes, vale lembrar, havia sido entre centro-direita e centro-esquerda (1982-2014), e, depois, em 2018, entre duas forças de centro-direita (MDB versus PSDB). Isto também se confirmou. Agora em 2022 a esquerda voltou a crescer e quase ultrapassou a candidatura de centro-direita, provavelmente catapultada pela campanha nacional sob a liderança de Lula.

 

A terceira expectativa, a se confirmar no dia 30 de outubro, é a reeleição de Eduardo Leite. A evolução das intenções de voto registradas pelas pesquisas, em parte, reforça essa possibilidade. Os dados dos dois levantamentos da Paraná Pesquisas, exibidos na Tabela 2, são os únicos que mostram Lorenzoni em efetiva vantagem na disputa – os números capturados em 6 de outubro praticamente se repetiram na pesquisa do dia 20. No caso da pesquisa da Real Time Big Data, houve modificação nas intenções de voto entre os dias 12 e 19 de outubro. Apesar disto, ambas as candidaturas estão parelhas. 

 

Tal dinâmica foi confirmada pela única pesquisa que a Atlas-Intel realizou até o momento e que foi divulgada há pouco mais de uma semana. O empate técnico mensurado por esse levantamento está no limite das margens de erro, com Leite numa posição mais próxima de alcançar a vitória. Na primeira pesquisa do IPEC, Leite já apareceu à frente de Lorenzoni, fora da margem de erro, e cujos valores voltaram a ser registrados na pesquisa do dia 21. 

*Margens de erro: Paraná Pesquisas [2,5%], RTBD [3%], IPEC [3%] e Atlas-Intel [2,5%].

**Real Time Big Data.

De fato, essa dinâmica expressa a própria racionalidade da transferência dos votos depositados no primeiro turno aos competidores do segundo turno. O Gráfico 1 mostra que, no colégio eleitoral do Rio Grande do Sul, houve uma expressiva dissintonia nos votos para presidente e governador das candidaturas do PL e do PT. No caso do PL, a diferença das votações em Lorenzoni e Bolsonaro totaliza 11,4%. Podemos inferir disto que alguma parcela desta ‘sobra’ tenha se distribuído, principalmente, nas candidaturas alternativas de direita (PP, PSC e Novo), que, somadas, obtiveram 6,9% dos votos. Dessa maneira, é plausível supor que os 4,5% restantes, provavelmente, votaram em Eduardo Leite. Portanto, a candidatura de Onyx Lorenzoni tem um potencial de votos abaixo dos cerca de 49% recebidos por Bolsonaro no estado. Sintomaticamente, a somatória dos votos de Lorenzoni no primeiro turno com os votos das demais candidaturas de direita resulta em 43,6%, um valor muito próximo ao registrado pelas pesquisas da Atlas-Intel e do IPEC. Vá lá, na melhor das hipóteses, o potencial de votos de Lorenzoni é igual à votação de Bolsonaro no primeiro turno – 48,9%.

 

A diferença nos votos para governador e presidente, no caso do PT, também foi expressiva – 15,6 pontos percentuais. Por um lado, isso mostra a base eleitoral cativa do PT, que se situa em torno dos 27% dos votos em Edegar. Por outro, o excedente (15,6%) exprime um posicionamento eleitoral seja de adesão à figura pessoal de Lula seja de rejeição a Bolsonaro, ou as duas coisas simultaneamente. Seja como for, os donos dos votos excedentes à base eleitoral petista, por coerência, não tenderão a votar em Lorenzoni no segundo turno. Ainda menos coerente seria esperar que uma quantidade relevante dos eleitores de Edegar venham a escolher o candidato de Bolsonaro no RS (não obstante exista uma coerência de longo prazo para alguns petistas que decidirem votar em Lorenzoni, mas que aqui, por carência de espaço, não convém explorar).

 

É possível supor que alguma parcela dos 15,6% de votos que Lula teve a mais do que Edegar tenham sido dados, em menor número, às candidaturas alternativas de esquerda (PDT, PSB, PSTU e PCB), que somaram 2,03% de votos, e, em maior quantidade, ao próprio Eduardo Leite. Descontando-se os votos somados das candidaturas alternativas de esquerda do voto excedente de Lula no estado, temos 13,57% como uma fatia do eleitorado possivelmente antibolsonarista, que, por lógica, votou no PT para presidente e no PSDB para o governo do estado. Subtraindo este valor da votação alcançada por Leite, no primeiro turno, temos 13,23% de prováveis eleitores de centro-direita que não apoiam nem o PT e nem o PL no estado – claro, alguns podem apoiar Bolsonaro, mas não Lorenzoni.

 

Não é por menos, então, que, no segundo turno, Leite manteve a estratégia de evitar a nacionalização da campanha e, assim, ter que se posicionar mais claramente na competição para a Presidência da República. Boa parte do seu eleitorado votou em Lula no primeiro turno; outra parte rejeita o PT. Agora, Leite não poderá perder os votos recebidos daqueles que (a) rejeitam Lorenzoni e Bolsonaro, (b) rejeitam Lorenzoni, mas não Bolsonaro, (c) rejeitam o PT, mas não Lula (d), (e) rejeitam o PT, Lula e Bolsonaro e (d) rejeitam o PT, Lula, Lorenzoni e Bolsonaro. Além disto, terá que ser ‘merecedor’ dos 26,7% que votaram em Edegar – se receber a transferência total desses votos e mantiver a sua base eleitoral do primeiro turno, Leite tem um potencial eleitoral de 53,5%, mais do que suficiente para quebrar o ‘tabu da reeleição’.

 

Entretanto, aqui cabe uma nota de cautela. Embora tenha como premissa a coerência ideológica do voto, este exercício é uma conjectura que pressupõe uma série de condições que não necessariamente serão mantidas. Em outras palavras, não se trata de uma previsão – ver antes o que, certamente, acontecerá –, mas de uma projeção – jogar para o futuro um cenário plausível de fatos presentes. Como em qualquer projeção, este exercício apresenta uma expectativa, uma hipótese a ser confirmada pelos eventos. Entretanto, temos elementos para concluir que a dura competição neste segundo turno pelo governo do estado se dá num contexto propício à recondução de Eduardo Leite ao Palácio do Piratini.

 

Aqui também cabe uma reflexão interpretativa final que transcende a disputa em curso. Este segundo turno no estado é fundamental para o jogo político nacional dos próximos anos. Em primeiro lugar, o PSDB aposta as suas últimas fichas na eleição do seu candidato para evitar que o partido vá de vez à bancarrota. Em segundo lugar, se eleito, Leite terá a possibilidade de buscar a projeção necessária para que venha a se tornar uma liderança da centro-direita do país com vistas à eleição presidencial de 2026.

 

Paulo Peres é doutor em Ciência Política pela USP e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também é diretor do Núcleo de Estudos sobre Partidos e Democracia. 

 

Eleição no Rio Grande do Sul: continuidade nas mudanças e mudanças na continuidade

Eleição no Rio Grande do Sul: continuidade nas mudanças e mudanças na continuidade

Paulo Peres

Publicado no Congresso em Foco

 

O Rio Grande do Sul vai às urnas neste ano num quadro político especialmente interessante. Pela primeira vez, desde a aprovação da emenda da reeleição, um governador tem reais chances de ser reconduzido ao cargo para um segundo mandato consecutivo. De acordo com pesquisa realizada nos dias 2 e 3 de setembro, pelo Real Time Big Data, Eduardo Leite (PSDB) tem 31% das intenções de voto, contra 26% de Onyx Lorenzoni (PL) e 12% de Edegar Pretto (PT). Embora 11 candidatos estejam no páreo, apenas estes três ultrapassaram a casa dos 10%. 

Considerando-se a margem de erro de 3%, Leite e Lorenzoni estão tecnicamente empatados, o que recomendaria alguma cautela a respeito do resultado final. Porém, três tipos de dados apontam para um cenário extremamente favorável à reeleição de Eduardo Leite. Outra pesquisa, realizada pelo IPEC, e divulgada no dia 2 de setembro, mostra uma distância consideravelmente maior entre os dois primeiros colocados: Leite aparece com 38% e Lorenzoni com 24%. Da mesma pesquisa do IPEC vem o segundo dado relevante: a simulação do segundo turno apontou a possível vitória do tucano por ampla margem de votos.

O terceiro dado é de natureza estrutural. Tendo em conta os alinhamentos ideológicos, é mais provável que os votos do primeiro turno na centro-esquerda migrem para a candidatura de Eduardo Leite no segundo turno. Em outras palavras, os eleitores da centro-esquerda tendem a votar na centro-direita para evitar a vitória da direita, representada por Lorenzoni. Mesmo que no segundo turno os potenciais votos dos demais partidos de direita se somem ao eleitorado do PL, o resultado não será suficiente para ultrapassar a votação potencial do PSDB uma vez acrescido o apoio eleitoral da centro-esquerda e da esquerda.

Portanto, ao que tudo indica, o processo eleitoral se encaminha para um desfecho inusitado. Justamente o candidato que, desde sempre, posicionou-se contra o instituto da reeleição e que, por reiteradas vezes, declarou que não concorreria ao segundo mandato, poderá realizar o feito jamais alcançado pelos seus antecessores. E, para completar essa situação paradoxal, Leite quebrará o ‘tabu da reeleição’ devido ao voto da centro-esquerda, principalmente dos petistas.

O segundo aspecto de maior interesse desta eleição é a provável alteração, pela segunda vez consecutiva, do perfil ideológico que baliza a disputa pelo governo do estado. Desde a redemocratização, formou-se um alinhamento de competição bipolar que, após 1990, consolidou-se como uma oposição entre a centro-direita e a centro-esquerda. Até então dominada pelo PDT, a liderança da centro-esquerda foi conquistada pelo PT em 1994, partido que até hoje segue como a força dominante nesse nicho do eleitorado. A centro-direita, por sua vez, tornou-se objeto de disputa entre o PMDB e o PSDB, mas com ampla vantagem para os peemedebistas.

A simples conferência dos resultados eleitorais de 1982 a 2018 expressa essa estrutura bipolar da competição entre a centro-esquerda e a centro-direita. O PMDB/MDB esteve entre os dois partidos mais votados nas eleições de 1982, 1986, 1994, 1998, 2002, 2010 e 2014, sagrando-se vencedor em 1986, 1994, 2002 e 2014. O PSDB foi um dos dois mais votados em 2006, 2010 e 2018, tendo vencido em 2006 e 2018. Portanto, das dez eleições realizadas desde a retomada da democracia, o PMDB venceu quatro e o PSDB venceu duas, num total de seis vitórias da centro-direita. 

Na centro-esquerda, o PDT esteve entre os dois mais votados em 1986 e em 1990, quando venceu em ambas eleições. Já o PT foi uma das duas maiores forças eleitorais em 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, alcançando o primeiro lugar em 1998 e 2010, quando chegou a conquistar o Palácio do Piratini logo no primeiro turno. Desse modo, os dois partidos da centro-esquerda tiveram três vitórias no período (a vitória restante foi obtida pelo PDS, em 1982). 

Em suma, a competição entre a centro-esquerda e a centro-direita quase sempre foi uma disputa entre PT versus PMDB e PSDB. Em 2018, embora a competição tenha se mantido bipolar, ocorreu uma importante mudança no alinhamento ideológico dos protagonistas. Ecoando a radicalização à direita da eleição presidencial, a competição para governador desalojou o PT da posição de antagonista da centro-direita e, junto com ele, a própria centro-esquerda. Naquela eleição, mostraram-se mais competitivas e chegaram ao segundo turno as duas maiores forças da centro-direita – o PMDB, que tentava a reeleição de José Sartori, e o PSDB, que venceu a eleição com Eduardo Leite.

Rebaixado à terceira força partidária estadual, o PT luta agora em 2022 para recuperar a sua posição e, com ela, alçar a centro-esquerda novamente à condição de polo protagonista das eleições ao governo do estado. Já o PSDB e o PMDB, ao invés de reproduzirem o embate de 2018, decidiram juntar forças e lançaram-se à corrida eleitoral numa chapa unificada. Esse lance estratégico, entretanto, abriu espaço para a retomada da direita como uma força competitiva no estado, condição perdida em 1986. Deste então, nenhum partido de direita havia conseguido recuperar o território perdido para o PMDB/MDB e, em alguma medida, para o PSDB. Candidatando-se pelo partido de Bolsonaro e com uma campanha declaradamente vinculada ao presidente, Onyx Lorenzoni vem conseguindo capturar o que sobrou da radicalização à direita do eleitorado em 2018. 

Desse modo, o padrão bipolar da competição que prevaleceu até 2018, entre a centro-esquerda (PT) e a centro-direita (PMDB e PSDB), foi alterado por um perfil caracterizado pelo confronto entre dois partidos de centro-direita (PMDB x PSDB). Em 2022, uma nova alteração está em curso, agora, entre a centro-direita (PSDB/MDB) e a direita (PL).

Nesse cenário, o PT se agarra à esperança de vincular a campanha estadual de Edegar Pretto à nacional, para atrair os eleitores não-petistas de Lula, afinal, os eleitores petistas já votam, quase incondicionalmente, no PT. De fato, a mesma pesquisa do IPEC mostra que as intenções de voto em Lula no RS estão em torno de 42% contra 34% dos que pretendem votar em Bolsonaro. No entanto, até o momento, a estratégia não surtiu efeitos e o partido corre o risco de ter votação menor do que a recebida em 2018, quando Rossetto obteve cerca de 18%. 

Igualmente interessado em nacionalizar a campanha, Lorenzoni também se agarra à esperança de se vincular a Bolsonaro para reacender o antipetismo, o anticomunismo e o moralismo religioso. Tal estratégia, obviamente, erra o alvo, pois o principal adversário é um tucano – e no segundo turno, certamente, os ataques ao ex-governador tenderão a se intensificar. Além disso, assim como no nível nacional, o tema de maior interesse do eleitorado no Rio Grande do Sul é a economia, um dos tetos de vidro do governo nacional ao qual Lorenzoni serviu fielmente.

Leite segue estratégia distinta. Em 2018, sua campanha se aproximou de Bolsonaro; agora, sua candidatura procura se afastar do presidente. Aproximar-se de Lula, por sua vez, é uma operação que exige refinada habilidade, pois tal movimento pode afastar os eleitores mais conservadores que garantirão o seu passaporte para o segundo turno. Mas, no segundo turno, será indispensável contar com os votos petistas, sem, no entanto, perder os conservadores do primeiro turno. 

Para evitar armadilhas, a campanha de Leite foge do debate nacionalizado e foca nas questões locais. Os seus programas e discursos dão ênfase às políticas realizadas pelo seu governo com vistas à recuperação financeira do estado e, apoiando-se nisto, aponta para a necessidade do segundo mandato para continuar as mudanças. Consideradas mercadistas pela centro-esquerda e esquerda, as reformas e propostas de Leite só não afugentarão esse eleitorado crucial no segundo turno porque, para esse nicho ideológico, a vitória da direita provocaria um dano muito maior.

Enfim, a possível grande mudança na eleição para governador será uma continuidade. Se vencer, Leite dará continuidade à sua agenda, mas graças à superação do ‘tabu da reeleição’. Por outro lado, a grande continuidade representará uma substancial mudança. Mantendo o seu padrão bipolar e bipartidário, a competição para governador terá como pólos o PSDB e um novo partido, o PL. Além disso, terá uma oposição ideológica não mais entre centro-esquerda e centro-direita, como ocorreu até 2018, e tampouco entre dois partidos da centro-direita, como naquela última eleição, mas sim entre a centro-direita, com a dobradinha PSDB/MDB, e a direita, com o PL de Lorenzoni, Bolsonaro e Valdemar da Costa Neto. Enquanto isso, o PT terá de ir em busca do tempo – e do eleitorado – perdido, ou seja, preparar novas lideranças.

 

Paulo Peres é doutor em Ciência Política pela USP e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também é diretor do Núcleo de Estudos sobre Partidos e Democracia.