Fábio Kerche*

O procurador-geral da República, Augusto Aras, está sendo bastante criticado pela quase unanimidade dos observadores políticos. Sua posição é considerada omissa, para dizer o mínimo, em relação aos diversos crimes cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Como é ele quem detém o monopólio da acusação contra o presidente junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), a hipótese de um processo, que ainda precisaria da autorização da Câmara dos Deputados, sempre foi remota. O chefe do Executivo é protegido por Aras em relação aos crimes comuns, e pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, em relação aos crimes de responsabilidade. Segundo a interpretação vigente, cabe exclusivamente ao presidente da Câmara dar continuidade ao processo que poderia abreviar o tempo de mandato do chefe de Governo. Bolsonaro está blindado.

A alternativa que resta aos cidadãos descontentes com os desmandos de Bolsonaro é derrotá-lo nas urnas. A eleição de outubro será a oportunidade de afastar o ex-capitão sem passar pela intermediação do procurador-geral da República e do presidente da Câmara dos Deputados. A questão é que mesmo no processo eleitoral, Bolsonaro contará com Aras: o procurador-geral da República é também o procurador-geral eleitoral. O mesmo Aras que atua no Supremo Tribunal Federal pode atuar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O Ministério Público Eleitoral não tem integrantes exclusivos. Seus membros ocupam posições no Ministério Público Eleitoral por um período, fruto de indicações. O procurador-geral eleitoral, que é o procurador-geral da República, indica o vice-procurador-geral eleitoral, que atua em seu nome no TSE, e os procuradores regionais eleitorais, que são integrantes do Ministério Público Federal e atuam junto aos Tribunais Regionais Eleitorais de cada estado. Além disso, existem os promotores eleitorais que são membros dos Ministérios Públicos estaduais que trabalham junto aos juízes e juntas eleitorais nas comarcas locais. 

O Ministério Público Eleitoral atua em todas as fases do processo eleitoral, do registro de candidaturas à diplomação, passando pela campanha e pela eleição. Sua atuação não se restringe somente aos candidatos e partidos, mas também em relação aos eleitores. Essa atuação ampla se dá ora como parte, propondo ações, ora emitindo pareceres sobre questões que chegam ao Judiciário por meio de terceiros – não há campanha importante que não possua uma estrutura jurídica. O Ministério Público e, como consequência, o procurador-geral da República é parte integrante e ativa da Justiça Eleitoral.

A questão é que o Ministério Público Eleitoral, ao menos em tese, reproduz todos os dilemas da instituição de seu braço “comum”. Como a hierarquia é frouxa, quando comparada a outras instituições públicas, e a discricionariedade é alta, podemos identificar uma atuação errática entre seus integrantes. O que é um problema em algum estado, pode não ser em outro, justamente porque depende da interpretação do promotor ou procurador eleitoral encarregado daquele local. A lei não é inequívoca e sempre há margem para diferentes interpretações. Nesse mesmo sentido, podemos esperar que o comportamento de Augusto Aras, ou de seu representante, seja similar a sua atuação como procurador-geral da República. Ou seja, um procurador-geral eleitoral, digamos, cuidadoso em excesso com o presidente, e agora candidato, Jair Bolsonaro. 

O modelo de indicação e recondução do procurador-geral da República parece ser o grande responsável por esse fiscal excessivamente alinhado com aquele que devia ser fiscalizado. Pela Constituição, o chefe do Ministério Público da União, que também é o procurador-geral eleitoral, é indicado pelo presidente com a aprovação do Senado para um mandato de dois anos, sem limite para reconduções. Esse modelo incentiva que o procurador-geral agrade ao seu principal eleitor com vistas a se manter no cargo, ou mesmo sonhar com uma indicação ao STF, por exemplo. Esse desenho previsto na Constituição Federal de 1988 incentiva que o ocupante do cargo, que possui discricionariedade para interpretar as leis que não são inequívocas, proteja o chefe do Executivo. Vimos fenômeno semelhante durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e seu “engavetador-geral da República”. 

O modelo de indicação e recondução adotado por Lula e Dilma Rousseff, que de maneira informal driblaram a previsão constitucional, também era bastante problemático. Ambos passaram a indicar ao Senado o nome mais votado pelos membros do próprio Ministério Público Federal. Assim, no lugar de buscar agradar o presidente, o ocupante da chefia da Procuradoria-Geral da República passou a ter que agradar pouco mais de 1.000 procuradores. Se no modelo constitucional o problema é o excesso de dependência com o Executivo, neste a questão é uma independência excessiva para processar políticos eleitos e a transferência de uma escolha tão importante para uma burocracia que praticamente não presta contas a terceiros.

Enquanto Augusto Aras parece proteger Jair Bolsonaro, o STF e o TSE usam de iniciativas heterodoxas para contornar a inércia do atual procurador-geral da República. Em várias oportunidades, os ministros ordenaram que inquéritos fossem continuados contra o candidato e atual presidente, a despeito das recomendações contrárias da Procuradoria-Geral da República. 

Com a expectativa de que a democracia brasileira volte aos trilhos no próximo ano, um bom debate seria uma revisão da forma de indicação do procurador-geral da República. Lula, que chegou a dizer que reeditaria a lista tríplice, em entrevista mais recente desconversou quando perguntado sobre o tema. Bolsonaro, segundo acusações, teria proximidade com Lindôra Araújo, vice-procuradora-geral, e que esta seria uma possível indicação para substituir Aras, que concorreria por uma cadeira no STF. O fato é que ambos os modelos de indicação para a chefia do Ministério Público da União adotados recentemente estão em xeque. 

Embora não exista uma fórmula que seja somente vantajosa, talvez valesse avaliar a extensão do mandato, o fim da recondução e a previsão de uma quarentena longa para ocupar outros cargos públicos. Com isso, os políticos eleitos ainda seriam chave no processo, mas o procurador-geral teria menos incentivo para “agradar” seus eleitores. Esse novo modelo também teria impacto nas eleições. O procurador-geral, inclusive quando exercesse as funções na justiça eleitoral, não seria nem tão independente para atuar como um franco atirador, nem tão ligado ao presidente que deturpe a própria finalidade de existir um fiscal do chefe do Executivo. 

 

Fábio Kerche é doutor em Ciência Política pela USP e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University. Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diversas publicações, do livro A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil, escrito em parceria com Marjorie Marona.