Carlos Ranulfo Melo*

Publicado no Jota

Uma organização federativa justifica, por si só, a vigência do bicameralismo em um arranjo institucional democrático. Mas no Brasil, assim como em muitos outros países, o Senado é muito mais do que uma instância de representação dos estados federados. No espírito do sistema de freios e contrapesos inaugurado pela experiência norte-americana, o bicameralismo brasileiro é simétrico, o que significa que a Constituição distribui de forma equilibrada os poderes legislativos entre as duas casas: tanto Câmara como Senado podem iniciar legislação. São poucas, ainda que importantes, as atribuições exclusivas de cada uma delas, e uma funciona plenamente como revisora da outra. 

Isso tem, por certo, implicações nas relações com o Governo, já que serão duas as instâncias com as quais o Executivo terá que negociar sua agenda, especialmente se a composição partidária for significativamente diferente de uma para a outra. Certamente, não basta que determinada instituição tenha autoridade institucional para funcionar como instrumento de controle sobre outra – ela precisa ter condição política de fazê-lo. Um Senado e uma Câmara governistas tenderão a ser mais lenientes com equívocos ou omissões do Executivo. Mas basta que uma das duas casas não o seja para que o sistema de controle possa funcionar.

Sob Bolsonaro, os brasileiros puderam ter uma boa ideia da importância de tudo isso. Nos primeiros dois anos de governo, o Senado, sob a presidência de Davi Alcolumbre (União Brasil), esteve mais alinhado ao Governo do que a Câmara dos Deputados. Já na presidência desta última, Rodrigo Maia sempre se prontificava a dizer o que poderia ou não passar, operando com autonomia na condução da agenda legislativa e funcionando como um anteparo às tentativas mais reacionárias do governo.

No segundo biênio, a situação se inverteu. Enquanto o Governo investia de forma determinante na vitória de Arthur Lira (PP) sobre Baleia Rossi (MDB) e com isso selava a aliança com o Centrão, no Senado a eleição de Rodrigo Pacheco (PSD), contra a também emedebista Simone Tebet, não pode ser creditada à intervenção governamental. Embora contasse com a simpatia do Governo, a candidatura do senador mineiro saiu vitoriosa graças a um arco de alianças ideologicamente diverso e que ia da direita à esquerda, incluindo o apoio declarado do PT. 

Arthur Lira se revelou um aliado fidelíssimo do Planalto, apenas demarcando de forma cautelosa sua diferença com o Governo no episódio da votação da proposta de emenda constitucional que tornava obrigatória a impressão do voto. Se Rodrigo Maia afirmava não levar a frente um processo de impeachment de Bolsonaro por falta de apoio político para tanto, Lira nunca cogitou em fazê-lo uma vez que isso romperia o acordo básico entre o Centrão e o Governo, a saber, garantir a qualquer custo a sobrevivência desse último. 

Por outro lado, Rodrigo Pacheco adotou uma postura de independência relativa do Palácio do Planalto, distanciando-se de forma explícita das investidas autoritárias do presidente da República. A existência de um bloco majoritário, onde se mesclavam senadores oposicionistas e independentes, logo se fez sentir na CPI da COVID. Em que pese a abertura da CPI só ter ocorrido após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o fato é que sua composição, ao configurar um quadro onde o Governo era minoria – algo que seria inconcebível na Câmara – já permitia ver a tendência mais geral da casa. 

Para 2023, tanto Arthur Lira como Rodrigo Pacheco são fortes candidatos a continuar presidindo suas respectivas casas. A reeleição para as presidências no Congresso é vedada no interior de uma mesma legislatura, mas permitida na passagem de uma para outra. 

Em 2019 Lira foi eleito para a Presidência da Câmara com 302 votos e desde então sedimentou sua liderança. Nesse meio tempo, o Centrão cresceu de forma expressiva. A opção partidária feita por Bolsonaro depois de romper com o Partido Social Liberal (PSL), o acesso progressivo a postos-chave no Governo e a vultosas parcelas do Orçamento da União, permitiram que Partido Liberal (PL), Progressistas (PP) e Republicanos aumentassem suas bancadas de 33, 38 e 30 deputados(as), respectivamente, para 77, 58 e 44, entre o primeiro e último ano da legislatura. Juntos passaram a controlar 34,9% da representação na casa e, com os recursos disponíveis, é possível que ainda ampliem sua força após a eleição. Segundo a Folha de São Paulo, eles estão entre as cinco legendas que mais aumentaram o número de candidatos em relação a 2018 – o PL de Bolsonaro dobrou o número de postulantes. Derrotar Lira em 2023 não é tarefa impossível, mas será muito difícil. 

No Senado, o Centrão também cresceu. Os três partidos acima referidos controlam hoje, levando em conta os titulares e não os suplentes em exercício temporário, 21% das cadeiras na casa – eram 12% por ocasião da posse. E o PL, particularmente, pode crescer nessa eleição graças ao investimento do bolsonarismo em nomes competitivos. Mas isso não deve ser suficiente para superar a aliança mais ampla que deve se formar em torno de Rodrigo Pacheco. Ademais, o PSD é o partido com mais chance de formar a maior bancada na casa

Tudo isso vem temperado por uma questão crucial – quem será o próximo presidente da República. A democracia, nas palavras de Adam Przeworski, é a incerteza institucionalizada; o desfecho das disputas é, dentro de certos limites, imprevisível. Nenhuma força política tem a garantia da vitória em uma eleição, mas todas, sem exceção, têm que aceitar o resultado – o que Bolsonaro vive ameaçando não fazer.

Se Lula vencer, o que parece mais provável, a recondução de Arthur Lira em  2023 abrirá um período de árdua negociação. A Presidência da Câmara acumula muito poder. E na atual gestão sua caixa de ferramentas se viu robustecida por uma centralização ainda maior da agenda e das dinâmicas legislativas – consubstanciada na redução da capacidade de obstrução por parte da minoria, no encurtamento do tempo de debate das proposições por meio de comissões especiais ou grupos de trabalho e na expansão das iniciativas votadas em regime de urgência e/ou de modo remoto.

Se Bolsonaro vencer, possibilidade que não se pode descartar, o Senado será crucial para a democracia brasileira. Ainda que a Câmara tenha a prerrogativa constitucional de iniciar a apreciação dos projetos que tem origem no Executivo, o Senado, instância revisora, pode barrar toda e qualquer proposição. Basta derrubá-la, ou simplesmente deixar de analisá-la. 

Além disso, caberá ao Senado aprovar as designações para a Procuradoria Geral da República (PGR) para pelo menos duas vagas para o STF. Desde a redemocratização nenhuma indicação para a PGR foi recusada. No que se refere ao STF, somente no governo de Floriano Peixoto, um presidente teve suas indicações barradas. Mas depois do que se viu neste mandato presidencial, algo pode mudar. Como dito antes, o Senado tem poder institucional para tanto. A questão é sempre política.

*Carlos Ranulfo F. Melo é doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.