De acordo com o Democracy Report 2022, do instituto V-Dem (Varieties of Democracy), 2021 viu um número recorde de nações autocráticas em relação aos últimos 50 anos. O extenso estudo aponta para uma mudança na natureza dos governos autocráticos, que agora dependem mais da polarização e da desinformação para moldar a opinião nacional e internacional. Essa combinação é vista em lugares que sofreram golpe militar, como Myanmar, em 2021, e também em países considerados democráticos. Na América Latina, quatro dos principais países da região têm um índice de preocupação com a desinformação superior à média global (56,4%): Brasil (84%), Chile (64,6%), Argentina (60,4%) e México (59,9%), de acordo com o relatório.

Neste período eleitoral, a preocupação com a desinformação no Brasil ganha força, herança do processo que levou Jair Bolsonaro ao poder. É fato que, de 2018 para cá, houve conscientização sobre o tema, medidas foram adotadas pelas plataformas digitais e pelo Judiciário. Ainda assim, há muito em jogo quando o tema é desinformação. Para adentrar essas questões, cumpre ter em vista que tratamos a desinformação como um processo deliberado de produção de desarranjos informacionais, com vistas à obtenção de ganhos políticos e/ou econômicos. É, portanto, uma expressão da disputa histórica em torno da informação. Como tal, não está restrita ao ambiente digital, ainda que este, por suas características (tais como opacidade, mediação algorítmica, grande volume de informações e circulação veloz de conteúdos) favoreça esse tipo de estratégia.

A primeira questão que merece ser mencionada é a mudança nos hábitos de consumo da população. A televisão ocupava espaço central na formação de hábitos e visões de mundo da população brasileira. Falamos de um país em que a principal emissora, a Globo, registrava, em média, 68% de audiência em 1993, participação que, atualmente, não alcança mais de 35%, segundo o Mídia Dados Brasil. Essa mudança ajuda a explicar o motivo de, apesar da cobertura crítica ao governo Bolsonaro por parte da emissora, especialmente durante a pandemia do novo coronavírus, seu posicionamento ter menos impacto que em 1989, para citar o ano da simbólica edição do debate entre os presidenciáveis Lula e Collor de Melo.

Houve, nas três últimas décadas, uma dispersão da audiência, espalhada em canais tradicionais como SBT e Record, que com a Globo ocupam o topo do ranking dos mais vistos, mas também em uma miríade de canais novos, entre os quais vários ligados a grupos religiosos, que foram os que mais ampliaram sua participação na radiodifusão brasileira durante o governo federal atual. Essa variedade de agentes amplia a disputa, inclusive ideológica, no setor. Outro ponto que contribui para um menor impacto dos grupos jornalísticos é a redução da procura da população por esse tipo de conteúdo. A pesquisa do Instituto Reuters, divulgada em 2020, registra que 54% dos brasileiros afirmam “evitar” o noticiário de propósito – índice mais elevado dentre os países pesquisados.

Trazendo esse cenário geral para as eleições, os números sugerem redução do impacto do horário eleitoral, que também teve duração diminuída. O programa em bloco, sequência de propagandas eleitorais, somava 50 minutos nas eleições de 2014, sendo exibido duas vezes por dia na TV e no rádio. Hoje, é dividido em dois blocos diários de 10 minutos, exceto aos domingos. Não se deve, é útil destacar, desconsiderar a importância desse espaço – a relação do Brasil com a radiodifusão e a diversidade do país não devem ser esquecidas. Não obstante, pelo menos, sua presença no cotidiano é menor. 

Por meio da TV, pode-se falar para um público difuso. Para um candidato conhecido, mas bastante criminalizado na mídia como Lula, voltar a estar na casa das pessoas é muito importante. Entre os dias 26 de agosto e 29 de setembro, o líder das pesquisas acumulará 3 minutos e 39 segundos. Bolsonaro é o candidato que fica em segundo lugar, tendo 2 minutos e 38 segundos. Cada candidato à Presidência aparecerá três vezes por semana, duas vezes ao dia. Até agora, evangélicos e pessoas de baixa renda parecem ser o foco dos candidatos a partir da TV. Lula, por exemplo, levou ao ar programa com tom religioso, ao passo que Bolsonaro pretende destacar o Auxílio Brasil.

 

A dispersão da audiência tem como elemento fundamental a ampliação do acesso à internet no Brasil, hoje frequente no cotidiano da maior parte dos brasileiros. Estes costumam usar sobretudo as redes sociais, inclusive porque, em muitos casos, acordos das redes com operadoras fazem com que não haja desconto na franquia de dados para acessá-las. As redes sociais são a principal fonte de informação sobre política para os grupos entre 16 e 24 anos e 25 a 34 anos. Entre 35 a 44 anos, as redes dividem centralidade com a TV. Esta lidera com folga apenas na faixa etária acima de 45 anos. O resultado dessa presença do bolsonarismo nas redes também é identificado pela pesquisa. Entre eleitores que pretendem votar em Bolsonaro, 43% usam as redes para se informar, percentual que chega a 25% quando a fonte é a televisão.

Nas redes, o campo bolsonarista tem tido mais presença e gerado mais interação que o campo lulista, conforme temos mostrado no Observatório das Eleições a partir do acompanhamento de perfis expressivos dos dois lados. O Facebook é a rede em que há maior projeção de aliados do atual presidente, ao passo que o Twitter é um ambiente mais favorável a Lula. No TikTok, a mais nova entre as principais redes, Lula tem tido mais sucesso. Bolsonaro ainda tem mais seguidores em todas as redes. Esse predomínio foi sendo construído nos últimos anos, não só com o apoio de Carlos Bolsonaro, mas de integrantes da extrema direita em âmbito internacional, como bem ilustra Donald Trump. Aqui está em jogo tanto o comportamento desse setor político, que compartilha a expertise entre os seus em fóruns internacionais, bem como a própria dinâmica de funcionamento das plataformas de redes sociais. Uma questão a ser acompanhada é a participação de André Janones, deputado federal e influenciador digital, na campanha de Lula, que pode aportar a ela uma linguagem mais “digital”.

Mas a linguagem é parte de uma dinâmica mais ampla. É que o modelo de negócios das plataformas está ancorado na disputa da atenção do usuário. Para isso, adotam segmentação de mensagens, que são direcionadas de acordo com perfis criados a partir da coleta de dados. Vários atores utilizam plataformas e seu funcionamento algorítmico para conferir diferente relevância a determinados conteúdos, sem que o público entenda quais critérios para uma mensagem chegar ou não a ele, com o objetivo de prever e modular o comportamento do usuário. Campanhas de desinformação e outros tipos de conteúdos foram produzidos em plataformas que não são neutras e são guiadas por termos de uso que funcionam como leis definidas unilateralmente. Também se beneficiam da automação das conversas, artificializando o debate público e gerando silêncio. Tudo isso produz bolhas que prendem as pessoas em circuitos de repetição de argumentos, tornando-as menos expostas à diversidade de ideias e mais vulneráveis à polarização. Tal segmentação é ampliada através de recomendações e publicidades, condicionando a visibilidade do conteúdo ao pagamento. No Brasil, por exemplo, o principal anunciante no Facebook e no Google é o Brasil Paralelo, produtora de conteúdos alinhados à direita. Nenhum grupo à esquerda se aproxima do investimento do Brasil Paralelo nas redes.

Como não houve uma mudança estrutural no modelo de negócios das plataformas nem das regras que devem orientá-las, os problemas vistos em 2018 podem ser revividos. Casos de desinformação nas redes já têm sido registrados pelas agências de checagem, inclusive em falas ao vivo na TV e em conteúdos impulsionados nas redes. Por outro lado, duas questões parecem impedir que a história se reapresente como farsa. Em primeiro lugar, a própria desarticulação do bolsonarismo, que sofreu diversos rachas ao longo do governo. O abandono de Bolsonaro por parte de candidatos locais também dificulta a estratégia de nacionalização de determinados conteúdos, o que foi fundamental para, naquela eleição, dar visibilidade a temas como o suposto “kit gay” nas escolas. Mais homogêneo, o setor evangélico bolsonarista pode ser o carro-chefe para esse tipo de nacionalização de conteúdos críticos ao adversário, Lula.

O segundo elemento que cria empecilhos para a desinformação é a atuação do STF (Supremo Tribunal Federal). Sua ação em relação a empresários bolsonaristas incide bem mais diretamente no ecossistema que produz a desinformação em grande escala do que as medidas acordadas entre o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e as plataformas, que se voltam especialmente à promoção de informações e transparência. São elementos importantes, mas insuficientes. Ainda que esse tipo de ação do STF não seja capaz de reverter a deterioração do debate público, tarefa que o Brasil terá que enfrentar nos próximos anos, pode fazer a diferença em uma eleição curta e em que os eleitores demonstram ter seus votos definidos.

 

Helena Martins é professora da UFC (Universidade Federal do Ceará). Doutora em comunicação pela UnB (Universidade de Brasília), com sanduíche no ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa). É editora da Revista EPTIC. Coordenadora do Telas – Laboratório de Tecnologia e Políticas da Comunicação e integrante do Obscom / Cepos.