A pesquisa “A cara da Democracia”, produzida pelo INCT IDDC na segunda quinzena de setembro, mostra que 54,3% dos brasileiros apoiam uma apuração paralela das eleições 2022 feita pelas Forças Armadas. Esse dado, que revela de imediato uma opção de parte da população por um arranjo de certa forma inédito na história democrática brasileira – a tutela das Forças Armadas em relação ao processo eleitoral – precisa ser analisado e bem observado também à luz do sistema de desinformação que se estrutura e se consolida com a ascensão do bolsonarismo. 

A desinformação sistemática e sistematizada do bolsonarismo e do governo Jair Bolsonaro tem produzido uma realidade paralela no país, o que sem dúvida provoca um estado de dúvida, insegurança e medo na população. O ecossistema de fake news tem, na tríade crenças + valores + medos, um componente potente que é trabalhado e bem utilizado. 

Portanto, esse apoio não é uma preferência pura e simples, é uma percepção construída meticulosamente utilizando esses “ingredientes” principais na produção dos discursos. Os eleitores brasileiros não acordaram, num belo dia, e pensaram: “Achamos interessante que as Forças Armadas façam uma apuração paralela da eleição”. Essa percepção, essa vontade, esse apoio, tudo isso foi cuidadosamente construído discursivamente e inoculado na população como vírus a partir da operação desse sistema de desinformação, com o bombardeio minuto a minuto de fake news, lives do presidente, declarações do presidente, notícias falsas nos portais fakes, ação de pastores nos cultos. Não é obra do acaso, tampouco uma percepção firme da população. 

Isso nunca esteve no âmbito da discussão das pessoas em relação às eleições no Brasil. Tal questão nunca esteve colocada, nunca foi minimamente considerada, nunca existiu, na verdade. Esse novo “atributo” das Forças Armadas no país foi uma construção – mais uma – da realidade paralela do sistema de desinformação bolsonarista. Nesse sentido, quero destacar aqui três aspectos importantes, em termos da produção discursiva, que me parecem muito relevantes para compreendermos esse cenário.

O primeiro deles se refere ao ataque sistemático às urnas. Desde 2018, com breves intervalos, Jair Bolsonaro ataca sistematicamente as urnas eletrônicas, o sistema eleitoral brasileiro, apontando fraude e ineficácia. No monitoramento que realizamos no âmbito da Editoria de Redes do Observatório das Eleições, o peso desses ataques é bastante evidente nas redes sociais – o termo “urna eletrônica”, no campo bolsonarista, tem sempre um aspecto pejorativo e de dúvidas sobre sua eficácia, o que gera bastante engajamento. Em suas lives, o presidente Jair Bolsonaro lança, reiteradamente, dúvidas sobre a eficácia das urnas, além de insinuar abertamente que qualquer resultado que não seja sua vitória será fraudulento. Esse discurso, meticulosamente produzido, tem uma capilaridade enorme, sendo disseminado pelas redes sociais, ganhando espaço em cultos e programas religiosos e até mesmo pautando a mídia tradicional – TVs, rádios e jornais passam a responder aos ataques do presidente sobre a eficácia das urnas. 

O outro aspecto é o medo da violência política, que tem ganhado espaço com os sucessivos casos envolvendo até mesmo o assassinato de opositores ao bolsonarismo. A partir desse medo que fica evidente na população – o chamado “voto envergonhado” é um indício importante desse estado –, o discurso relativo às Forças Armadas procura então mostrá-las como garantidoras de certa ordem e como instrumentos de força a coibir a violência ou a fraude. Portanto, esses discursos constroem uma percepção também positiva das FAs, o que pode levar à constatação, de parte da população, de que, se existe possibilidade de fraude, essa apuração paralela se justifica de alguma forma.   

Por fim, como terceiro aspecto, chamo atenção para a avalanche de produções mostrando resultados falsos de pesquisas falsas. Na última semana, circulou pelas redes sociais um suposto recorte de uma reportagem do Jornal Nacional dando o resultado de uma pesquisa Ipec com Jair Bolsonaro bem à frente de Lula. O vídeo é uma mostra do estrago que as deep fakes conseguem fazer. Em linhas bem gerais, esse recurso utiliza inteligência artificial para modular a voz e a expressão facial das pessoas, o que possibilita colocar em qualquer personagem qualquer tipo de discurso. O vídeo com a  suposta reportagem do JN impressiona pela qualidade – para um leigo, é impossível perceber que se trata de conteúdo fraudulento, mentiroso, inventado. Vale lembrar que um recurso com essa qualidade não é de baixo custo, ou seja, há ainda em operação um forte esquema de financiamento para produção e disseminação de fake news no Brasil. Esses conteúdos falsos aliam-se às declarações do presidente da República de que as pesquisas realizadas por institutos de reconhecida credibilidade – como Datafolha e Ipec – são mentirosas e que não reproduzem a realidade. Em contraposição, Bolsonaro cita reiteradamente o que ele chama de “datapovo”, ou seja, as pessoas nas ruas em apoio a ele. Pois bem, esse tipo de conteúdo e de declaração causa, sim, uma grande confusão para as pessoas que estão sendo bombardeadas com declarações oficiais – as declarações de pessoas públicas têm grande impacto na avaliação e  na construção da percepção das pessoas em relação aos fatos.

Esses três aspectos, coordenados, criam a percepção, na população, de que é positiva uma tutela das Forças Armadas nas eleições. Portanto, esse apoio à apuração paralela resulta também, sem dúvida nenhuma, desse poder de criação e disseminação de discursos e percepções do real que é fruto do complexo sistema de desinformação consolidado sob o bolsonarismo no Brasil. Na terra da realidade paralela, nada é aleatório.