Cristiana Losekann e Marjorie Marona

Publicado no JOTA

A mobilização dos tribunais não é estratégia incomum em meio a disputas políticas no Brasil. Tampouco é desconhecida daqueles que se engajam em uma disputa eleitoral. As eleições, aliás, são um campo fértil para intervenção de juízes e promotores, não apenas porque o quadro institucional reserva enorme capacidade à autoridade judicial e inúmeras oportunidades para intervenção dos juízes ao longo de todo o processo eleitoral, como também em razão dos muitos pontos de acesso e variados instrumentos jurídicos à disposição das candidaturas. 

Como consequência, quase todos os aspectos do processo eleitoral podem ser questionados judicialmente. E são. Segundo o Mural Eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, desde o dia 1º de agosto de 2022 mais de 56.000 decisões foram proferidas pela Justiça Eleitoral em todo o país, versando sobre os mais diversos temas. Os registros de candidatura e as prestações de conta são as questões mais contestadas judicialmente, mas as campanhas eleitorais têm sido alvo frequente da batalha judicial que as candidaturas travam entre si. De fato, qualquer campanha que se pretenda competitiva não pode prescindir de planejamento jurídico estratégico, o que não envolve apenas aspectos defensivos. Ao contrário, as candidaturas adversárias são judicialmente escrutinadas a cada etapa do processo eleitoral.

Para além de analisar os efeitos da prática da judicialização das eleições, linearmente, em termos de ganhos e perdas judiciais, convém considerar mais amplamente as dinâmicas da ação coletiva, que estão em jogo em uma disputa eleitoral. Quer dizer, o objetivo no horizonte do litigante não é simplesmente ganhar a ação judicial; ele visa a ganhar as eleições, de modo que a judicialização pode ser uma forma para atingir a vitória eleitoral. Por meio de uma ação judicial, portanto, buscar-se-ia produzir reações no eleitorado. Assim, muitas vezes, o importante é menos a reação do tribunal – e os efeitos imediatos da decisão judicial – e mais a série de consequências políticas que são produzidas quando uma ação judicial é proposta no contexto das eleições.

A litigância estratégica visa também a conquista de audiência, portanto. Em contexto eleitoral, o limite temporal imposto pelo calendário, intensifica a mobilização estratégica do judiciário. É fundamental, por exemplo, para qualquer campanha, ocupar o maior tempo possível nos veículos de comunicação, sobretudo aqueles que possuem escala nacional. E o questionamento judicial de um ato de um candidato pode ser um meio de ampliar o espaço disponível, em razão da cobertura da mídia tradicional ou da dinâmica própria das redes sociais. 

Para além da visibilidade, a judicialização pode fomentar a inserção de determinado argumento no debate público (eleitoral), porque junto com a notícia da contestação judicial, seu conteúdo é apresentado, o que possibilita a conquista de eleitores a partir da controvérsia suscitada. Esse parece ser o caso das ações que a candidatura do ex-presidente Lula (PT) tem apresentado em face da estratégia de subversão eleitoral que Bolsonaro (PL) adotou na sua campanha à reeleição. A cada ataque às instituições democráticas, a cada discurso de ódio que profere, a cada fake news que Bolsonaro dissemina, lá está seu principal adversário pronto para mobilizar a Justiça Eleitoral não apenas com o intuito imediato de que sejam retirados de circulação os produtos dos crimes contra o Estado de Direito, mas de enfatizar a postura antidemocrática e iliberal do candidato à reeleição.

Em muitos casos Lula não está só. Em face dos flagrantes abusos de poder político e econômico que a candidatura de Jair Bolsonaro (PL) incorreu por ocasião dos festejos do último 7 de setembro pelos 200 anos da independência do Brasil, Ciro Gomes (PDT) somou-se ao questionamento judicial dos atos de campanha do ainda presidente. É que as estratégias judiciais não servem só para conquistar novos eleitores. Muitas vezes, são necessárias à manutenção da posição política de oposição, no sentido de que a omissão em face de flagrante ilegalidade pode ser interpretada como fraqueza política ou até como falta de convicção acerca da questão em disputa. Ademais, o ritual processual envolve a construção de evidências e provas que alcançam um poder de convencimento importante e que podem ser usadas como um acessório fundamental para a construção de um discurso crítico acusatório. 

Eleitoralmente, evidenciar o uso da máquina pública por parte do atual presidente é importante insumo para a campanha de Lula porque coloca em xeque os esforços bolsonaristas de se distinguir do principal rival por uma suposta superioridade ética e moral. Para a campanha de Ciro Gomes, entretanto, o efeito esperado talvez extrapole as pretensões eleitorais, servindo a contestação judicial dos atos de campanha de Bolsonaro mais para comunicar publicamente sua posição política em face do tema da corrupção.

Assim é que a judicialização estratégica não é favorável a qualquer partido e seu potencial depende da posição política que o litigante ocupa no jogo. Para a campanha de Jair Bolsonaro, por exemplo, pode soar contraditório o recurso à Justiça Eleitoral quando sua principal estratégia envolve ataques sistemáticos ao Tribunal Superior Eleitoral. Não por acaso, o PL tem recorrido apenas pontualmente ao TSE.

Por fim, a própria Justiça Eleitoral tem seu desempenho, em parte, impactado por fatores exógenos, extra-institucionais. O TSE está sob enorme pressão porque as eleições deste ano não são normais: está em jogo a democracia no Brasil. Dado o modelo de governança eleitoral centrado na autoridade judicial não espanta que os ataques de Bolsonaro se dirijam, sobremaneira, aos tribunais superiores e seus ministros. O TSE, portanto, atua com o desafio de regular a disputa eleitoral ao mesmo tempo que defende sua posição institucional: se interfere demais, dá munição aos discursos bolsonaristas de parcialidade; se deixa a disputa eleitoral correr solta, arrisca submergir com a democracia brasileira. Não é propriamente o caso de amarrar-se no mastro do próprio navio, mas estar atento à sedução da judicialização estratégica não é má ideia.

 

Cristiana Losekann é doutora em Ciência Política pela UUFRGS, professora do Departamento de Ciências Sociais da Ufes e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Ufes.

Marjorie Marona é professora da UFMG, coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina e pesquisadora do INCT IDDC. Graduada e mestre em Direito, possui doutorado em Ciência Política. É co-organizadora de Justiça e Democracia no Brasil na América Latina: para onde vamos? e coautora de A Política no banco dos réus: a Lava-Jato e a erosão da democracia no Brasil.