Profa. Dra. Sabrina Areco

Publicado No Brasil de Fato

 

A abordagem em perspectiva entre a dinâmica nacional eleitoral e as disputas estaduais e municipais contribui para que se compreenda tanto o jogo político nacional como as diferentes dinâmicas locais. Isto é, o caso particular ajuda a rever ou reafirmar hipóteses de caráter mais geral formuladas nas análises políticas. 

Nesse aspecto, o estado do Acre é interessante para pensar sobre a trajetória do lulismo. Em 2002, Lula (PT) havia sido o mais votado no estado no primeiro e no segundo turno. Na disputa pela reeleição em 2006, o candidato da oposição, Geraldo Alckmin (PSDB), ganhou no primeiro turno e, no segundo, a maioria dos eleitores no estado optou por Lula. Nas eleições subsequentes não houve mais vitórias petistas. A candidata Dilma Rousseff (PT) não venceu em primeiro e nem em segundo turno nas eleições de 2010 e em 2014. Na presidencial de 2018, foi o estado que proporcionalmente mais votos atribuiu à candidatura de Bolsonaro (77,22% no segundo turno). 

A partir de 2006, portanto, há reiterada opção anti-PT no estado para a Presidência e que ocorreu justamente quando tornou-se possível notar uma virada importante, em nível nacional, das características dos eleitores do Partido dos Trabalhadores. Seguindo os estudos de Singer (2012), a partir de 2006 consolidou-se um processo de reorganização das escolhas eleitorais no qual a chamada classe média aderiu eleitoralmente ao PSDB, enquanto ocorria a adesão do subproletariado, isto é, as camadas mais vulneráveis e precarizadas, ao presidente Lula. 

Se este era um fenômeno nacional, era esperado que o mesmo ocorresse no Acre devido às suas características sociais e demográficas. O estado tem um grande contingente populacional que está na faixa da pobreza, o que em certa medida decorre do fato de que detém uma economia de forte base extrativista. Explicar essa não-adesão por si só é uma questão importante para se explorar tanto o argumento de Singer sobre o lulismo (2012) como para pensar sobre diferentes fundamentos para a escolha eleitoral. A recusa ao PT no estado poderia ser atribuída ao conservadorismo local, o que faria crer que há um voto de tipo ideológico conservador ou de direita bastante consolidado. Porém, tal forma de abordar o fenômeno nos conduziria a pensar que no Acre a ideologia é mais relevante do que o pragmatismo das camadas pobres, sendo essas camadas objeto de políticas sociais que ganharam maior alcance nos governos petistas. Também deixaria de lado a constatação recorrente dos estudiosos que, desde os anos de 1980-1990, identificam a existência de um conservadorismo popular persistente e espalhado pelo país (Pierucci, 1987) – o que, assim, não poderia ser tratado como uma particularidade acreana.

A questão torna-se mais complexa porque, a partir de 1996, o Acre elegeu 5 sucessivos governos estaduais petistas: Jorge Viana (1998 e 2002), Binho Marques (2006) e Tião Viana (2010 e 2014). Foi um dos primeiros estados a ser governado pelo partido, juntamente com Mato Grosso do Sul (1998 e 2002) e Rio Grande do Sul (1998) e se inseriu, naquele contexto, na construção do que se chamou de “modo petista de governar”, cuja origem estaria nas primeiras experiências do partido em prefeituras a partir dos anos de 1980  (Bittar, 2003). 

A trajetória do partido no Acre, por sua vez, estava, em sua origem, bastante ligada aos movimentos de seringueiros. Expulsos de seus territórios com a reorganização capitalista da estrutura fundiária com a finalidade de expandir a produção da pecuária nos anos de 1970, os seringueiros passaram a se organizar e o movimento ganhou repercussão nacional e internacional após o assassinato da liderança Chico Mendes em 1988. A partir de então, a articulação dos seringueiros, sindicalistas e movimento indígena passou a influenciar a inserção da pauta da defesa da floresta e de sua população nos debates políticos locais e o partido expressou eleitoralmente estas experiências (Silva, 2010). 

O início da trajetória do PT no governo ocorreu com a eleição para a prefeitura de Rio Branco de Jorge Viana em 1992. A vitória de Tião Viana ao Senado, em 1998, alçou a família ao papel de liderança política regional. No mesmo ano, para a disputa do governo estadual, o partido no estado formou um amplo arco de alianças partidárias, com o vice-governo atribuído ao PSDB . A chapa PT-PSDB no Acre, assim, afastava-se da oposição nacional entre os dois partidos e a autorização ocorreu de modo excepcional na convenção nacional do PT. 

Dessa forma, a primeira eleição de Viana no estado pode ser atribuída à articulação com o discurso ecológico e de sustentabilidade, que dava uma base militante à candidatura e que amalgamou diferentes grupos vinculados às demandas dos povos da floresta, estes mobilizados desde os anos de 1980; somado à estratégia de alianças e de defesa de uma forma moderna e nova de governar em oposição aos partidos que até então dominavam a cena estadual. O êxito estendeu-se por mais 4 eleições estaduais, contribuindo também para vitórias petistas também na prefeitura da capital Rio Branco, com exceção na eleição de 2002. 

O ponto aqui, portanto, é entender por que o eleitorado do estado não aderiu ao lulismo e, ao mesmo tempo, explicar a aparente contradição entre o voto antipetista para o governo federal e as sucessivas vitórias para o executivo estadual. Poderia-se aventar que houve uma adesão aos Viana depois de 1998 em razão de conversão destes em uma elite política local e, a derrota do mesmo grupo em 2018, ligada à recusa generalizada da classe política, verificada no Brasil e em diferentes partes do mundo a partir da década de 2010 (Przeworski, 2020). A oposição ao PT para o governo federal, por sua vez, derivaria de uma hegemonia do agronegócio não apenas no Acre, mas também em outros estados que compõem a Amazônia, como Roraima e Rondônia. Nos governos petistas, embora tenha correspondido ao período do boom das commodities e da política de campeões nacionais que favoreceu o setor do agronegócio, havia uma disputa entre ambientalistas e a ala ligada ao setor.  

O resultado da eleição de 2022 nos ajudará a tratar destes fenômenos. Jorge Viana (1997) lançou-se candidato ao governo estadual, como oposição ao atual governador Gladson de Lima Cameli (Progressistas). O estado do Acre ocupa parte da chamada Amazônia Ocidental e passa pela expansão recente da produção de soja e milho, que em conjunto com a madeira e seus derivados são responsáveis pelo superávit crescente aferido a partir de 2021 (G1-Acre, 2022). A madeira é, no entanto, o principal produto de exportação, sendo portanto indissociável a relação entre a ampliação das áreas desmatadas e os resultados obtidos pelo setor extrativista e do agronegócio no estado.  O discurso de defesa do agronegócio, ecoado na campanha vencedora de Gladson de Lima Cameli pelo governo estadual (agora candidato à reeleição), poderia ser tratado como uma variável importante para explicar porque houve tão forte apoio eleitoral a Bolsonaro no estado. Por outro lado, o slogan dos governos petistas era governo da floresta. 

 O discurso fortemente anti-ambientalista, assim, parece ser o eixo central da adesão a Bolsonaro. O discurso oferece a miragem de uma floresta destruída e que recompõe a lógica de luta contra a natureza sintetizada pelo projeto militar dos anos de 1970 da construção da rodovia Transamazônica.

Porém, assim como os demais estados que compõem a Região Norte, o agronegócio não é a atividade econômica central na composição do PIB, diferente do que ocorre na Região Centro Oeste e Sul. Por isso, é necessário considerar os mecanismos dos quais o setor do agronegócio dispõe para mobilizar o eleitorado em nome de seus interesses próprios. Indo um passo adiante, é  preciso compreender a composição deste setor, em especial na Região Amazônica e em dinâmicas de expansão recente de áreas cultivadas. Nesse aspecto, poderia se dizer que o agronegócio é hegemônico no estado, embora possa ser possível indicar que o segmento é reforçado sobretudo por uma dinâmica a partir do alto, com estratégias governamentais e disputadas no campo do discurso ideológico que perfaz o papel do segmento social em si. Em outros termos, uma hegemonia sem classe ou de um grupo que quer se fazer classe. 

A sugestão aqui, assim, é um deslocamento para análise da política eleitoral no Acre considerando suas relações com as classes e grupos sociais em disputa, seguindo as trilhas de Singer (2018) mas, de forma complementar, que o caso nacional seja confrontado com as dinâmicas locais e regionais. 

 

REFERÊNCIAS

BITTAR, Jorge (Org.). Governos estaduais: desafios e avanços. Reflexões e relatos de experiências petistas. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

G1-Acre. Com mais de 36% de exportação de madeira, Acre fechou agosto com saldo positivo de US$ 2,55 milhões. Disponível em: https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2021/09/13/com-mais-de-36percent-de-exportacao-de-madeira-acre-fechou-agosto-com-saldo-positivo-de-us-255-milhoes.ghtml. Acesso em: 07 de setembro de 2022.

PIERUCCI, Antônio Flávio. As bases da nova direita. Novos estudos CEBRAP, v. 19, p. 26-45, 1987.

PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia.São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

SILVA, Nilson Euclides. Um governo na floresta: Política, mito e história no Acre contemporâneo. São Paulo: Editora Baraúna, 2010.

SILVA, Sheila Maria Palza. Políticas públicas e ambientalismo no agroamazônico: um estudo de caso do Acre (1999-2010). 2012. 329 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – RJ, 2012.

SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012

SOUZA, João José Veras de. Seringalidade: a colonialidade no Acre e os condenados da floresta. 2016. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Florianópolis, 2016.