Camila Penna de Castro

Publicado na Mídia Ninja

 

“Nós pacificamos o MST titulando terras pelo Brasil”, disse Jair Bolsonaro em entrevista ao Jornal Nacional, no dia 22 de agosto de 2022. As cerimônias de entrega de “títulos” para assentados da reforma agrária em diferentes estados do Brasil têm sido uma estratégia importante em sua campanha à reeleição, bem como nas campanhas de candidatas e de candidatos a governador e a cargos legislativos federais e estaduais. Para acelerar a agenda de titulação privada de terras públicas foi criado, em fevereiro de 2021, o programa Titula Brasil, que descentraliza o processo de titulação para os municípios por meio de acordos de cooperação técnica com o Incra. Entre janeiro de 2019 e agosto de 2022, o site do governo federal informa que foram emitidos mais de 400 mil títulos, um número expressivo quando comparado ao número de títulos emitidos nos governos Lula e Dilma somados, aproximadamente 250 mil. Contudo, 90% dos títulos emitidos no governo Bolsonaro são títulos provisórios, e não definitivos, como revelam os dados do INCRA disponibilizados por meio da Lei de Acesso à Informação.

Todas essas ações de entrega de títulos provisórios, como se fossem títulos definitivos,  são acompanhadas por um discurso que conecta a política de titulação, na forma da garantia da propriedade privada, a uma pacificação dos conflitos no campo, permitindo a segurança jurídica necessária para o desenvolvimento. Mas, se os conflitos no campo estão diminuindo à medida que aumenta a privatização das terras públicas, por que tantas lideranças que reivindicam o direito de permanecer em territórios tradicionais estão sendo assassinadas e ameaçadas nos últimos anos? Quem é o público beneficiário da política fundiária do governo Bolsonaro? Qual a relação entre a titulação de terras e as ameaças crescentes aos territórios das populações tradicionais?

Política fundiária, em sentido amplo, diz respeito à política estatal de gestão de terras. E a regularização fundiária envolve a emissão de certidões e de títulos que atestam o direito à terra ao ocupante. A política fundiária compreende uma série de políticas específicas, que estão arroladas na Constituição de 1988 ou em legislação infraconstitucional, como a política de demarcação de territórios indígenas, a política de reforma agrária, que envolve a obtenção de propriedades e a criação de assentamentos (além de uma série de políticas sociais para garantia da permanência na terra), a titulação de territórios tradicionais, como os quilombos, por meio da regularização na forma de um título coletivo, e, por fim, a regularização de posses privadas em áreas públicas de pequenos, médios e grandes produtores rurais, na forma de um título privado. É este último tipo de política fundiária que está no centro da agenda do governo Bolsonaro, pois, em relação a terras indígenas e quilombolas, ele prometeu  não demarcar nem um centímetro

O discurso sobre a titulação de terras para agricultores, propagado na campanha de Bolsonaro em 2022, busca subverter a relação entre a democratização do acesso à terra e a luta dos movimentos sociais pela reforma agrária. Ao se colocar como o presidente que de fato garantiu o direito à propriedade privada para o trabalhador pobre do campo, na esteira de uma política intensiva de titulação privada de terras de assentamentos, ele acusa a esquerda e o MST de terem usado essa população como massa de manobra. Contudo, a concessão de títulos privados não é política de reforma agrária.

A possibilidade de permanência de agricultores em um assentamento  requer políticas sociais, tais como crédito para produção, garantia de moradia, ingresso em programas de fomento, acesso à educação. Há um longo processo de consolidação dos assentamentos, durante o qual a terra segue sendo pública e as famílias têm direito a certidões provisórias de ocupação dos lotes, não a títulos de propriedade definitivos. A política de reforma agrária é pensada nessa lógica para que não haja venda imediata e reconcentração, antes mesmo que os assentados possam ter condições de se consolidar na terra. Além da regularização fundiária de terras públicas do INCRA, o que contempla assentados da reforma agrária, a legislação atual prevê também outras formas de regularização de posses privadas em terras públicas federais. Em 2009, por meio do Programa Terra Legal, passou a ser possível a regularização de posses em terras na Amazônia Legal. Em 2017 essa possibilidade se ampliou para terras da União em todo o território nacional. Em 2019, o governo Bolsonaro editou uma Medida Provisória com o propósito de ampliar o tamanho da posse a ser regularizada sem necessidade de vistoria presencial. Essa MP perdeu a validade e deu origem a dois projetos de lei, que agora tramitam conjuntamente no Senado (PL 2633 e PL 510).       

A tônica desses projetos é flexibilizar os procedimentos burocráticos para a regularização, haja vista a demora na tramitação dos requerimentos no Incra. Um dos pontos centrais é a dispensa de vistoria presencial para propriedades médias e grandes e a utilização de sensoriamento remoto e de autodeclaração. Contudo, pela legislação atual que dispensa vistoria presencial para imóveis pequenos, estaria contemplada a grande maioria das demandas (89% dos requerimentos na Amazônia Legal). Portanto, a mudança na legislação atual teria como finalidade real a facilitação para regularização de posses médias e grandes.  

O tema da titulação de terras não é uma pauta apenas do agronegócio ou do setor patronal, tendo apelo significativo na base dos movimentos de agricultores familiares, haja vista o peso moral da garantia da propriedade privada em um regime normativo neoliberal, além da possibilidade de acessar empréstimos bancários. Inclusive, o relator do PL 2633 é o Deputado Zé Silva (MG), vinculado ao sindicalismo rural. Esse setor demarca sua posição defendendo o direito à titulação apenas para pequenos e médios produtores. Essa postura se diferencia dos setores patronais e da base governista, que argumentam pela necessidade de não diferenciar grandes e pequenos, e que se colocam mais claramente em defesa do agronegócio.

Há um discurso que fundamenta o direito à privatização da terra pública e que ao mesmo tempo exclui populações tradicionais. Se, na política de Bolsonaro, indígenas e quilombolas estão excluídos do acesso às terras públicas, qual é então seu público alvo? A justificativa que o senador Irajá de Abreu (PSD/TO) apresenta para a proposição do PL 510, que flexibiliza os critérios de regularização fundiária de posses privadas, nos responde: “para que não perdure essa situação que tanto prejuízo leva aos que dependem da agricultura para o seu ganha-pão, notadamente os pequenos agricultores, além daqueles que produzem em maior escala, contribuindo para o êxito do agronegócio no Brasil”. A argumentação que fundamenta o discurso de campanha de Bolsonaro é antiga e tem como lastro o desenvolvimento e o progresso advindos da inserção na cadeia produtiva do agronegócio. Ou seja: se merece terra na medida em que se pode contribuir para a produção agropecuária. O parâmetro para essa contribuição é a produtividade medida pela agroexportação, seja o produtor grande, médio ou pequeno.

Conflitos: por que eles permanecem?

 

Titular terras e garantir a propriedade privada são meios para se alcançar o desenvolvimento e o progresso, e também para “pacificar” o campo. Essa é a mesma justificativa apresentada pelo regime militar para o programa oficial de colonização do centro e do norte do Brasil. Naquele contexto, assim como hoje, “pacificar” pode também significar “eliminar”. Mas como o projeto de titulação de terras se relaciona com o aumento dos conflitos violentos no campo? A Comissão Pastoral da Terra registrou aumento de 75% nos assassinatos no campo em 2021 em comparação a 2020.

Para responder a essas questões, é necessário considerar o processo de desmantelamento recente de políticas e de órgãos que tinham operado de maneira apenas incipiente nas últimas décadas, como a política de regularização fundiária de territórios quilombolas feita pelo Incra e as políticas operadas pela Funai. Também é importante considerar que, no território, o pleito da posse privada muitas vezes não é manso e pacífico, estando sobreposto à presença tradicional de populações que também reivindicam o mesmo espaço, mas não na chave legitimadora da contribuição para a agroexportação. Um exemplo recente é a invasão do Quilombo Fortaleza (BA) por pistoleiros ligados a um posseiro que reivindica o direito à posse privada de parte do território. 

Se a titulação coletiva não avança, pois a política está desmantelada, e há uma facilitação da titulação privada por meio da política atual, o conflito se intensifica e a legitimidade para “pacificar” ou “exterminar” também. Menos de 7% dos territórios quilombolas reconhecidos foram titulados e 62% das terras indígenas existentes no Brasil seguem com pendências de regularização.

 

Camila Penna de Castro é professora Adjunta de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Sociologia (UnB), mestre em Ciência Política (UnB) e bacharel em Relações Internacionais (PUC Minas). Membro permanente dos programas de pós-graduação em Sociologia (PPGS/UFRGS) e em Políticas Públicas (PPGPP/UFRGS). Trabalha com pesquisa nas seguintes áreas: sociologia rural, movimentos sociais, políticas públicas, Estado e teoria social