Como indicar um procurador-geral da República

Como indicar um procurador-geral da República

Modelo pode combinar fim da recondução, mandato mais longo e quarentena para outros cargo

Fábio Kerche*

O procurador-geral da República é uma das figuras mais importantes do cenário político brasileiro. Com assento, literalmente, no Supremo Tribunal Federal, opina sobre matérias constitucionais levadas a julgamento, tem o monopólio da acusação criminal do presidente e dos políticos de alto escalão e é o procurador-geral eleitoral, o chefe do Ministério Público da União e o presidente do Conselho Nacional do Ministério Público. A entrada do PGR na pauta eleitoral, sendo um dos temas das entrevistas com presidenciáveis no Jornal Nacional, é bem-vinda.

Há dois modelos de indicação, e recondução, em disputa. Um, previsto na Constituição, diz que é o presidente que escolhe um integrante do Ministério Público da União para que seu nome seja aprovado pelo Senado para um mandato de dois anos. Não há limites para a renovação desse mandato, desde que o processo se repita. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, reconduziu seu PGR por três vezes.

Modelo alternativo, adotado sem qualquer alteração na legislação por Luiz Inácio Lula da Lula e Dilma Rousseff, se baseava numa lista tríplice votada por pouco mais de mil procuradores da República. Os presidentes petistas indicavam para a sabatina no Senado o nome mais votado pelos colegas de Ministério Público Federal, deixando de lado os outros ramos do Ministério Público da União, como procuradores do Trabalho. Na prática, os presidentes petistas delegaram o direito de escolher o chefe do Ministério Público da União para servidores públicos não eleitos, estimulando uma pauta corporativa para aquele que é o Ministério Público mais caro do mundo em termos de PIB. Michel Temer (MDB), em sua rápida passagem pelo Planalto, escolheu o segundo nome mais votado da lista tríplice.

Os dois modelos de escolha são ruins e incentivam comportamentos questionáveis. Um estimula um PGR excessivamente atrelado ao presidente, e o outro, um chefe do Ministério Público que não presta contas à sociedade e que dificilmente poderá ser responsabilizado por seus atos. O maior problema, contudo, é a possibilidade da recondução.

No modelo constitucional, o PGR precisa agradar o presidente para ter seu mandato renovado ou até ser indicado para postos mais importantes, como o STF. O responsável por acusar o presidente e seus ministros junto à Suprema Corte para crimes comuns só terá sua recondução assegurada se agradar justamente àquele que deve ser fiscalizado. O engavetador-geral da República de FHC e o excessivamente cauteloso Augusto Aras são frutos desse modelo institucional.

No caso da lista tríplice, o procurador-geral, para ter o seu mandato renovado, deve agradar aos seus próprios colegas. O direito de que servidores públicos possam escolher uma figura central na República não assegura que o processo seja mais democrático do que aquela que passa pelo presidente eleito pelo voto popular. Um PGR poderoso e excessivamente independente da prestação de contas a terceiros é tão problemático quanto um excessivamente atrelado ao chefe do Executivo. Rodrigo Janot, o PGR da Lava Jato, fez tão mal a democracia brasileira quanto Aras.

 

É preciso buscar uma alternativa. Seria um ganho se conseguíssemos equilibrar autonomia do PGR, mas sem desconsiderar a legitimidade dos políticos eleitos. A saída pode ser um modelo que combine o fim da recondução, mandato mais longo e uma quarentena para outros cargos —tudo isso passando pela indicação do presidente e pela aprovação do Senado.

Essa fórmula não estimularia o PGR a agradar seu eleitor, seja o presidente, sejam os demais procuradores, justamente por não poder ser reconduzido ao cargo. A quarentena extensa desestimularia que o PGR buscasse uma recompensa para outras vagas no Executivo, Legislativo ou Judiciário. Um mandato longo e, talvez, de forma que um procurador-geral indicado em um mandato presidencial ainda sirva em uma parte do próximo, assegura tempo para a condução de investigações e de processos.

No laboratório da política, as experiências adotadas em diferentes momentos se mostraram equivocadas em relação à indicação do PGR. Que o futuro permita o debate sobre alternativas ao que não funcionou.

*Doutor em ciência política pela USP, é professor da Unirio e membro do Observatório das Eleições INCT/IDDC; coautor do livro “A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil” (ed. Autêntica)

O que está em jogo nas eleições 2022: o Poder Judiciário

O que está em jogo nas eleições 2022: o Poder Judiciário

Ministros têm atuado de modo organizado diante do conjunto de ameaças que o ecossistema de desinformação e a violência política associada representam para o processo eleitoral

Marjorie Marona*

Vitor Marchetti**

Fábio Kerche***

Publicado Nexo Jornal

 

O crescente protagonismo da Justiça Eleitoral brasileira na consolidação de nosso regime democrático tem chamado a atenção para o desempenho do Poder Judiciário e do Ministério Público – atores que não figuravam nos reiterados debates sobre a reforma do sistema político no Brasil. Isso em um contexto em que talvez nada seja mais instável na democracia brasileira do que as suas regras eleitorais, em boa medida em razão da atuação da própria Justiça Eleitoral. 

Explica-se: embora algumas regras estruturantes da competição política eleitoral sigam intactas até o momento, há inúmeras e frequentes mudanças que foram gerando a necessidade de reacomodação e readaptação dos partidos e dos políticos. Parcela significativa dessas transformações é consequência de uma postura ativista – e reformista – por parte dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). A verticalização das coligações (2002), a redução do número de vereadores (2004), a anulação dos efeitos da cláusula de barreira (2006), a fidelidade partidária (2008) e a proibição do financiamento eleitoral por empresas (2016), são bons exemplos de alterações promovidas via Judiciário.

De fato, o nosso modelo de governança eleitoral combinou alguns elementos que permitiram à autoridade judicial atuar quase como um legislador, um rule making no processo eleitoral. E o TSE tornou-se, na prática, um órgão do STF para matéria eleitoral, agregando status constitucional à parte considerável das discussões jurídicas sobre a competição eleitoral. A partir daí, o protagonismo partilhado pelo TSE e pelo STF na agenda eleitoral só faz crescer. 

Atualmente, o universo de ações em matéria eleitoral que tramitam no STF compreende um total de 258. Desses, 118 se referem ao controle concentrado (ADIs – Ações Diretas de Inconstitucionalidade – e ADPFs – Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental) e 140 são oriundos do controle difuso de constitucionalidade ou, ainda, das competências originárias da Corte. Para além do volume, a variedade de temas em discussão mostra a amplitude da agenda eleitoral no STF, o que indica a disposição de judicialização da disputa eleitoral e do exercício do mandato, tanto pelos partidos políticos e seus candidatos, quanto pela Procuradoria-Geral da República. A agenda abarca discussões sobre candidaturas (normas de registro e financiamento), passando pelas regras eleitorais (cláusulas de barreira, de desempenho e crimes eleitorais), até às condições para exercício e manutenção do mandato (crimes de responsabilidade, suspensão de direitos políticos, vacância de cargo eletivo, dentre outros temas). Soma-se à agenda eleitoral do STF discussões em torno dos virtuais impasses que o caráter nacional das recém-criadas federações deverá impor às alianças estaduais. 

A atuação siamesa entre TSE e STF deve ser ainda mais destacada no pleito de 2022. A verdade é que desde as eleições de 2018 os ministros do STF que revezam assento no TSE, assumindo sua presidência alternadamente, organizaram uma coalizão cujos efeitos podem ser sentidos em diversas dimensões do desempenho da Justiça Eleitoral. Fux, Rosa Weber, Barroso, Fachin e, finalmente, Alexandre de Moraes, têm atuado de modo organizado diante do conjunto de ameaças que o ecossistema de desinformação e a violência política associada representam para o processo eleitoral e, consequentemente, para a vitalidade da democracia brasileira.

Alternando investidas mais ou menos contenciosas, a coalizão de ministros do STF – que conta com eventual adesão da Corregedoria-Geral Eleitoral – assume estratégias que por vezes parecem desencontradas, mas que refletem o ambiente de tensão institucional que o ainda presidente – e candidato à reeleição – Jair Bolsonaro faz questão de sustentar. Diante da campanha aberta de difamação do sistema eleitoral, liderada pelo Palácio do Planalto, o TSE reagiu duramente, instaurando, por exemplo, um inquérito administrativo contra Bolsonaro. Simultaneamente, o tribunal vem ampliando os canais de diálogo com setores da sociedade e das Forças Armadas, através da Comissão de Transparência Eleitoral.

As grandes questões que as eleições gerais de 2022 colocam para a Justiça Eleitoral parecem bem desenhadas: fake news e violência política, que se interconectam no ataque antidemocrático às instituições e na proliferação dos discursos de ódio. As estratégias de enfrentamento a elas dependem, em parte, da mobilização dos candidatos e seus partidos e do Ministério Público, facilitada pela multiplicidade de recursos jurídicos e pontos de acesso à disposição. A disposição do próprio tribunal também conta: o TSE tem vasta área de manobra, particularmente pelas competências e atribuições que acumula. 

Nesta eleição, os desdobramentos políticos do desempenho do TSE dar-se-ão sob a presidência de Alexandre de Moraes, de quem se espera forte atuação política nos bastidores, mas também respostas céleres e rigorosas nos autos. Tido como severo e centralizador, Moraes possui ampla capacidade de articulação, em razão de sua trajetória profissional sempre ligada à política. O ministro ocupou cargos em diversas administrações do PSDB e do DEM em São Paulo e depois o Ministério da Justiça no governo Temer (MDB). 

Vale destacar também a interlocução que mantém com a cúpula das Forças Armadas, o que pode aliviar a tensão entre o tribunal e os militares, que marcou a presidência de seu antecessor – o ministro Fachin. O bom trânsito com a caserna pode contribuir para desincentivar um embarque da corporação em uma aventura golpista de Bolsonaro. Ademais, Moraes segue como relator de ações que, no STF, atingem Bolsonaro e aliados, tal como o inquérito das fake news e o das milícias digitais, o que lhe garante fogo extra no desempenho de sua função de resguardo da posição institucional do TSE. 

Com um background jurisprudencial que ajudou a construir pelas decisões que determinaram a remoção de conteúdo falso ou de ataque às instituições de plataformas digitais, Moraes deve ser rápido e assertivo também em relação às fake news e a discursos de ódio que atinjam candidatos. 

No contexto dessas eleições, o maior desafio do TSE será o de assumir uma postura ativa e intransigente na defesa do processo e das instituições eleitorais – e da democracia brasileira -, sem tornar-se, ele mesmo, um player na disputa. A estratégia a ser adotada talvez seja associar assertividade na desarticulação estrutural das redes de desinformação e violência político-institucional com a contenção na arbitragem, ponto a ponto, dos atos de campanha de Lula e Bolsonaro. O calibre, no entanto, deverá ser modulado desde o primeiro dia de campanha até a declaração do resultado, com vistas a assegurar a legitimidade do processo e conter os riscos à democracia brasileira.

Marjorie Marona é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina e pesquisadora do INCT IDDC (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação). Graduada e mestre em direito, possui doutorado em ciência política. É coorganizadora de “Justiça e Democracia no Brasil na América Latina: para onde vamos?” e coautora de “A política no banco dos réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil”.

Vitor Marchetti é cientista político e professor da graduação e da pós-graduação em políticas públicas da UFABC (Universidade Federal do ABC). É autor do livro “Justiça e Competição eleitoral” (EdUFABC, 2015).

Fábio Kerche é doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University (EUA). Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diversas publicações, do livro “A política no banco dos réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil”, escrito em parceria com Marjorie Marona. 

 

#TragoVerdades: Aras também é o procurador-geral eleitoral.

#TragoVerdades: Aras também é o procurador-geral eleitoral.

Fábio Kerche*

O procurador-geral da República, Augusto Aras, está sendo bastante criticado pela quase unanimidade dos observadores políticos. Sua posição é considerada omissa, para dizer o mínimo, em relação aos diversos crimes cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Como é ele quem detém o monopólio da acusação contra o presidente junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), a hipótese de um processo, que ainda precisaria da autorização da Câmara dos Deputados, sempre foi remota. O chefe do Executivo é protegido por Aras em relação aos crimes comuns, e pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, em relação aos crimes de responsabilidade. Segundo a interpretação vigente, cabe exclusivamente ao presidente da Câmara dar continuidade ao processo que poderia abreviar o tempo de mandato do chefe de Governo. Bolsonaro está blindado.

A alternativa que resta aos cidadãos descontentes com os desmandos de Bolsonaro é derrotá-lo nas urnas. A eleição de outubro será a oportunidade de afastar o ex-capitão sem passar pela intermediação do procurador-geral da República e do presidente da Câmara dos Deputados. A questão é que mesmo no processo eleitoral, Bolsonaro contará com Aras: o procurador-geral da República é também o procurador-geral eleitoral. O mesmo Aras que atua no Supremo Tribunal Federal pode atuar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O Ministério Público Eleitoral não tem integrantes exclusivos. Seus membros ocupam posições no Ministério Público Eleitoral por um período, fruto de indicações. O procurador-geral eleitoral, que é o procurador-geral da República, indica o vice-procurador-geral eleitoral, que atua em seu nome no TSE, e os procuradores regionais eleitorais, que são integrantes do Ministério Público Federal e atuam junto aos Tribunais Regionais Eleitorais de cada estado. Além disso, existem os promotores eleitorais que são membros dos Ministérios Públicos estaduais que trabalham junto aos juízes e juntas eleitorais nas comarcas locais. 

O Ministério Público Eleitoral atua em todas as fases do processo eleitoral, do registro de candidaturas à diplomação, passando pela campanha e pela eleição. Sua atuação não se restringe somente aos candidatos e partidos, mas também em relação aos eleitores. Essa atuação ampla se dá ora como parte, propondo ações, ora emitindo pareceres sobre questões que chegam ao Judiciário por meio de terceiros – não há campanha importante que não possua uma estrutura jurídica. O Ministério Público e, como consequência, o procurador-geral da República é parte integrante e ativa da Justiça Eleitoral.

A questão é que o Ministério Público Eleitoral, ao menos em tese, reproduz todos os dilemas da instituição de seu braço “comum”. Como a hierarquia é frouxa, quando comparada a outras instituições públicas, e a discricionariedade é alta, podemos identificar uma atuação errática entre seus integrantes. O que é um problema em algum estado, pode não ser em outro, justamente porque depende da interpretação do promotor ou procurador eleitoral encarregado daquele local. A lei não é inequívoca e sempre há margem para diferentes interpretações. Nesse mesmo sentido, podemos esperar que o comportamento de Augusto Aras, ou de seu representante, seja similar a sua atuação como procurador-geral da República. Ou seja, um procurador-geral eleitoral, digamos, cuidadoso em excesso com o presidente, e agora candidato, Jair Bolsonaro. 

O modelo de indicação e recondução do procurador-geral da República parece ser o grande responsável por esse fiscal excessivamente alinhado com aquele que devia ser fiscalizado. Pela Constituição, o chefe do Ministério Público da União, que também é o procurador-geral eleitoral, é indicado pelo presidente com a aprovação do Senado para um mandato de dois anos, sem limite para reconduções. Esse modelo incentiva que o procurador-geral agrade ao seu principal eleitor com vistas a se manter no cargo, ou mesmo sonhar com uma indicação ao STF, por exemplo. Esse desenho previsto na Constituição Federal de 1988 incentiva que o ocupante do cargo, que possui discricionariedade para interpretar as leis que não são inequívocas, proteja o chefe do Executivo. Vimos fenômeno semelhante durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e seu “engavetador-geral da República”. 

O modelo de indicação e recondução adotado por Lula e Dilma Rousseff, que de maneira informal driblaram a previsão constitucional, também era bastante problemático. Ambos passaram a indicar ao Senado o nome mais votado pelos membros do próprio Ministério Público Federal. Assim, no lugar de buscar agradar o presidente, o ocupante da chefia da Procuradoria-Geral da República passou a ter que agradar pouco mais de 1.000 procuradores. Se no modelo constitucional o problema é o excesso de dependência com o Executivo, neste a questão é uma independência excessiva para processar políticos eleitos e a transferência de uma escolha tão importante para uma burocracia que praticamente não presta contas a terceiros.

Enquanto Augusto Aras parece proteger Jair Bolsonaro, o STF e o TSE usam de iniciativas heterodoxas para contornar a inércia do atual procurador-geral da República. Em várias oportunidades, os ministros ordenaram que inquéritos fossem continuados contra o candidato e atual presidente, a despeito das recomendações contrárias da Procuradoria-Geral da República. 

Com a expectativa de que a democracia brasileira volte aos trilhos no próximo ano, um bom debate seria uma revisão da forma de indicação do procurador-geral da República. Lula, que chegou a dizer que reeditaria a lista tríplice, em entrevista mais recente desconversou quando perguntado sobre o tema. Bolsonaro, segundo acusações, teria proximidade com Lindôra Araújo, vice-procuradora-geral, e que esta seria uma possível indicação para substituir Aras, que concorreria por uma cadeira no STF. O fato é que ambos os modelos de indicação para a chefia do Ministério Público da União adotados recentemente estão em xeque. 

Embora não exista uma fórmula que seja somente vantajosa, talvez valesse avaliar a extensão do mandato, o fim da recondução e a previsão de uma quarentena longa para ocupar outros cargos públicos. Com isso, os políticos eleitos ainda seriam chave no processo, mas o procurador-geral teria menos incentivo para “agradar” seus eleitores. Esse novo modelo também teria impacto nas eleições. O procurador-geral, inclusive quando exercesse as funções na justiça eleitoral, não seria nem tão independente para atuar como um franco atirador, nem tão ligado ao presidente que deturpe a própria finalidade de existir um fiscal do chefe do Executivo. 

 

Fábio Kerche é doutor em Ciência Política pela USP e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University. Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diversas publicações, do livro A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil, escrito em parceria com Marjorie Marona.  

Façamos Justiça à Justiça Eleitoral brasileira

Façamos Justiça à Justiça Eleitoral brasileira

Façamos Justiça à Justiça Eleitoral brasileira.

Marjorie Marona e Fábio Kerche*

A Justiça Eleitoral brasileira organiza e regulamenta as eleições, além de funcionar como árbitro de disputas relativas ao processo eleitoral. É esse ramo do Poder Judiciário, com auxílio do Ministério Público, que distribui as urnas por todo o território, seleciona e treina mesários, conta os votos, decide sobre os horários em que as sessões funcionarão no dia da votação, autoriza um cidadão a ser candidato ou decide se um partido está abusando da liberdade de expressão ao falar de um adversário, por exemplo. Portanto, ainda que as eleições sejam sobre candidatos, partidos e eleitores, no Brasil os juízes e promotores eleitorais são peças fundamentais para que o processo seja justo e competitivo. 

Como qualquer opção institucional, esse modelo, que centraliza a governança eleitoral na autoridade judicial, tem vantagens e desvantagens. Por um lado, garante que atores não diretamente envolvidos na disputa eleitoral funcionem como árbitros do processo, induzindo a condução imparcial do pleito e evitando o desvirtuamento do real resultado das eleições. Por outro, estende ao ramo eleitoral da Justiça – talvez o que mais diretamente lida com o mundo político – a discricionariedade de que juízes e promotores gozam em tantas outras dimensões de atuação. Como decorrência, a previsibilidade sobre o desempenho da Justiça Eleitoral resta prejudicada: são 2.622 juízes e pelo menos mais 2.000 promotores eleitorais decidindo livremente sobre incontáveis questões eleitorais em todo o território nacional. A Justiça Eleitoral carrega, portanto, todas as vantagens e as desvantagens típicas do modelo de organização do Judiciário e do Ministério Público brasileiros. 

A magnitude e a complexidade da Justiça Eleitoral brasileira tornam bastante árdua a tarefa de avaliar seu desempenho que, a cada pleito, tem-se tornado mais grave, em parte pelas razões estruturais já aduzidas, ligadas ao nosso modelo de governança. A judicialização das eleições – fenômeno que a editoria de Justiça e Eleições do Observatório das Eleições pretende desvendar no pleito desse ano – não é, portanto, inédito. Seja porque milhares de agentes do sistema de justiça são envolvidos no processo eleitoral, seja pela larga abrangência de sua atuação, ou em razão dos variados instrumentos processuais e múltiplos pontos de acesso à Justiça Eleitoral. O fato é que cada uma das etapas de construção da representação política eleitoral carrega oportunidades de judicialização. E a Justiça Eleitoral pode, evidentemente, funcionar bem em uma dimensão de atuação e apresentar um desempenho mais ou menos problemático em outra. É possível, por exemplo, que a implementação e o gerenciamento da disputa eleitoral, que envolve o credenciamento dos eleitores e dos candidatos, a coleta e contagem dos votos e a publicação dos resultados e diplomação dos eleitos seja amplamente festejada, enquanto críticas tão contundentes quanto acertadas sejam dirigidas à adjudicação judicial de conflitos eleitorais. 

As críticas à Justiça Eleitoral acompanham, portanto, o desenvolvimento do próprio fenômeno da judicialização das eleições. Dirigem-se, especialmente, ao gigantismo que a intervenção judicial pode assumir no processo eleitoral, mas também à instabilidade que pode ser gerada. Uma Justiça que escrutina e tutela obstinadamente as virtudes do voto flerta com a possibilidade de obstrução da mais livre manifestação da preferência do eleitor, ameaçando inclusive as manifestações mais criativas de construção da representação política. Essencialmente, cria assimetria onde deveria preveni-la: na competição político-eleitoral.

Não são dessa natureza os ataques que vêm sendo desferidos às instituições que organizam a competição político-eleitoral no Brasil. O ainda presidente Jair Bolsonaro e sua turba de apoiadores mais desatinada, em posição diametralmente oposta daqueles que apresentam críticas embasadas a aspectos do desempenho da Justiça Eleitoral, visando ao aperfeiçoamento da institucionalidade democrática, têm recorrido a uma retórica violenta. Estas acusações são alicerçadas em inverdades que visam, justamente, à deslegitimação do processo eleitoral – coração da nossa democracia. Trata-se de uma estratégia já mapeada pela literatura dedicada à compreensão dos processos de erosão democrática pelo mundo, marcada pela ascensão de novos aspirantes à liderança autoritária, e emulada por Bolsonaro.

O centro nervoso das investidas antidemocráticas são as suspeições infundadas que recaem sobre a vulnerabilidade das urnas eletrônicas diante de virtuais hackeamentos e outros atentados fraudulentos. A Justiça Eleitoral responde, firme e rigorosamente, a cada um dos embustes – e não apenas por meio de comunicados oficiais, como se viu obrigada a emitir diante da recente reunião que Bolsonaro promoveu com dezenas de embaixadores estrangeiros no Palácio do Planalto, mas também por meio de ações técnicas e políticas. A área de tecnologia e informação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), órgão de cúpula da Justiça Eleitoral, passou por renovações importantes no último ano. Ainda em 2021, o TSE criou uma comissão para ampliar a fiscalização e a transparência do processo eleitoral, apostando na participação de especialistas, representantes da sociedade civil e instituições públicas como meio de resguardar a integridade das eleições. Em outra frente, instituiu, em caráter continuado, o Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação na Justiça Eleitoral. Este conta com mais de 154 parceiros, como redes sociais e plataformas digitais, instituições públicas e privadas, entidades profissionais, entre outros. Todos dividem com a Justiça Eleitoral as tarefas de monitorar notícias falsas, combatendo a desinformação com informação correta sobre a questão abordada, ampliar o alcance de informações verdadeiras e de qualidade sobre o processo eleitoral e capacitar a sociedade para que saiba identificar e denunciar conteúdos enganosos.

Essas e outras iniciativas de enfrentamento à campanha de descrédito das eleições são resultado de uma coalizão bastante peculiar entre os três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) com assento no TSE – Barroso, Fachin e Alexandre de Moraes -, algumas vezes em articulação inclusive com o corregedor-geral da Justiça Eleitoral. As reações mais agudas até agora envolveram, inclusive, a abertura de um inquérito administrativo na Justiça Eleitoral contra Bolsonaro, cujos desdobramentos são incertos – embora devesse preocupar o presidente. O fato é que no TSE paira certo temor sobre o nível da violência política que pode eclodir no dia da eleição ou, em caso de derrota de Bolsonaro nas urnas, no momento pós-eleitoral, que engloba a diplomação do vencedor. 

Para neutralizar as possíveis investidas mais violentas dirigidas ao TSE, organizou-se uma estrutura antiatentado que envolve a filmagem por câmeras da sala-cofre, onde os votos ficam registrados, que está protegida contra incêndio, alagamento, radiação e terremoto. Restam descobertos os cidadãos brasileiros, à mercê do produto imperscrutável da convergência perversa entre o discurso de ódio e de fraude eleitoral que ecoam no Palácio do Planalto: a violência pós-eleitoral, na forma de caos social está na mesa nessas eleições. 

O cenário exige, portanto, enorme responsabilidade dos analistas do desempenho da Justiça Eleitoral no Brasil. Ninguém está acima das críticas, mas elas devem ser embasadas. A Justiça Eleitoral está sendo atacada justamente naquilo que só mereceria elogios. 

 

* Marjorie Marona é professora da UFMG, coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina e pesquisadora do INCT IDDC. Graduada e mestre em Direito, possui doutorado em Ciência Política. É coorganizadora de Justiça e Democracia no Brasil na América Latina: para onde vamos? e coautora de A Política no banco dos réus: a Lava-Jato e a erosão da democracia no Brasil.

* Fábio Kerche é doutor em Ciência Política pela USP e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University. Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diversas publicações, do livro A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil, escrito em parceria com Marjorie Marona.