Globalização das eleições? Protestos de brasileiros no exterior

Globalização das eleições? Protestos de brasileiros no exterior

Priscila D. Carvalho e Mariana Dutra

Publicado na Mídia Ninja

O engajamento e posicionamento político de brasileiros no exterior voltou à agenda eleitoral nesta semana. Na terça-feira, 20 de setembro, enquanto Jair Bolsonaro visitava Nova York para a Assembleia-Geral da ONU, manifestantes brasileiros fizeram ações de alta visibilidade na cidade de Nova York. Projetaram imagens do rosto de Jair Bolsonaro com a palavra vergonha escrita em quatro idiomas no prédio da ONU. Enquanto isso, no centro da cidade, as frases “tchutchuca do centrão” e “broxonaro” foram projetadas no famoso prédio do Empire State Building. Estas imagens se alastraram nas redes, sendo compartilhadas até pelo ator hollywoodiano Mark Ruffalo.

Há outros casos de articulações prévias sendo reativadas em períodos eleitorais – ou quando novos temas relevantes para o grupo entram na agenda nacional. O grupo de Nova York, Defend Democracy in Brazil, ativo desde de 2015 no contexto de organização de ativistas no exterior contra o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, atualmente conta com quase 19 mil seguidores nas redes sociais. Em outras cidades estadunidenses, alguns grupos que também vinham articulados desde 2015 incorporaram-se aos “Comitês Populares de Luta”. Os comitês são estratégia da própria campanha de Lula para mobilização de base com apoio de parceiros históricos como movimentos sociais e que superaram as fronteiras nacionais.

Em Genebra, os protestos começaram em 11 de setembro, com  uma bicicletada em apoio a Luiz Inácio Lula da Silva. A agenda segue a cada domingo, até o dia 25 no Bains des Pâquis, onde acontece uma feira – ou mercado de pulgas. Organizadoras do evento prepararam também placas para casas e para bicicletas. Não faltaram toalhas do Lula: os objetos viajam rápido nesses tempos. O grupo que organiza os protestos de Genebra identifica-se como Comitê Lula Livre e reúne-se desde 2018. 

 

A estratégia de protestos no exterior vem sendo usada também por entusiastas de Jair Bolsonaro. Em setembro, seus apoiadores fizeram motociatas em cidades como Miami, reproduzindo um dos principais formatos de manifestação no solo nacional. Ali, as atividades aconteceram no dia 5 de setembro, e o cenário era parecido com o das manifestações vistas no dia 7, no Brasil: verde e amarelo dominava a cena e apoiadores cantaram o hino nacional. O protesto foi registrado no YouTube. 

Apoiadores do candidato à reeleição também mantém grupos fechados no facebook, tais como Brasileiros de direita nos Estados Unidos e Brasileiros de direita no Exterior. Organizam-se também presencialmente. Realizaram o evento Congresso Conservador Brasileiros – US em junho, na região metropolitana da cidade de Boston, nos EUA. O objetivo, segundo organizadores, foi divulgar ideias de direita e promover um dia de imersão em valores e pautas conservadoras.

Os enfrentamentos entre os diferentes grupos políticos são visíveis no exterior. Na semana passada, um grupo expressivo de apoiadores de Bolsonaro esteve sob a sacada da embaixada do Brasil em Londres, onde ouviu o discurso do presidente com fortes reações de apoio.  Ao mesmo tempo, ambientalistas brasileiros e não brasileiros protestavam contra o presidente, na capital da Inglaterra.

O tema é importante pois, de acordo com as últimas estatísticas do Itamaraty , entre 2015 e 2020 o número de brasileiros residentes no exterior aumentou em 55%. São aproximadamente 4,2 milhões de brasileiros morando fora do país, dos quais quase 700 mil estão aptos a votar nestas eleições.. A comunidade emigrada é territorialmente dispersa, mas permanece unida e até mesmo engajada em questões nacionais, por afinidades ideológicas e políticas. 

A presença de protestos relacionados às eleições em outros países reforça a ideia de que a ação coletiva pode ocorrer além das fronteiras e, ainda assim, manter-se conectada à  política doméstica. O teórico Kym Barry, ao analisar o fenômeno da cidadania e território, observa que  “a migração dissocia cidadania e residência, rompendo com as concepções organizadas de Estados-Nação como entidades territoriais limitadas com populações fixas”.

A imagem de um bumerangue foi usada para explicar como funciona a pressão internacional para temas nacionais. Grupos da sociedade civil sem acesso aos governos nacionais buscam aliados internacionais – organizações do sistema ONU, outras ONGs – para pressionar governos e identificado no influente trabalho das pesquisadoras Margareth Keck e Kathryn Sikkink, ainda nos anos 2000.

As manifestações e protestos eleitorais nem sempre chegam a angariar parceiros internacionais, mas podem ganhar atenção da mídia internacional ou, quando são bem conectados em redes sociais, chegar a influenciar brasileiros – aqui ou no exterior.

Nesta eleição, quando a adesão ao nacionalismo é um dos temas em disputa, é curioso que as disputas nacionais sejam, também elas, afetadas pelo aumento da circulação de pessoas para além das fronteiras nacionais. A globalização se apresenta nas dinâmicas eleitorais por meio dos eleitores. 

 

Priscila Delgado de Carvalho é pequisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (pós-doutorado) e pesquisadora associada do INCT Instituto da Democracia. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais, e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em Ciência Política pela UFMG.

Mariana Dutra é Mestre em Políticas Públicas pela FLACSO e graduada em Ciências Sociais pela UFPR. Atua como Pesquisadora & Gestora de Projetos em organizações sociais nacionais e internacionais nas áreas de Cidadania, Políticas Públicas e Migrações. Está Diretora Executiva do Instituto Diáspora Brasil. 

O que está em jogo nas eleições: ação coletiva, políticas e democracia

O que está em jogo nas eleições: ação coletiva, políticas e democracia

Priscila D. de Carvalho

Publicado no Nexo

Passado quase um mês de campanha, a presença dos atores coletivos nas eleições se expressa em dois eixos: um compreende disputas entre preferências políticas e, outro, disputas sobre as regras do jogo. 

Explico: disputar preferências por determinadas políticas públicas ou pela aplicação de recursos estatais em determinadas agendas é o que se faz no dia a dia da política. A ideia de preferências pode encobrir que valores e afetos importam, mas cabe aqui para falar do que se espera que ocorra após o resultado de cada eleição. Já disputar as regras do jogo em período eleitoral é menos usual, ao menos em democracias de fato consolidadas. Os relevantes protestos que vimos nas primeiras semanas de campanha, com as cartas pela democracia, e as recentes manifestações no Dia da Independência, misturadas com parada militar e campanha eleitoral, se adequam mais a esse segundo perfil. Os dois eixos caminham paralelamente e singularizam este período eleitoral.

A cada pleito, grupos com interesses definidos se organizam para pressionar possíveis candidatos. Apresentam propostas, fazem reuniões, trocam promessas de apoio por compromissos sobre ações que os agradem nos anos vindouros. Sociedade civil organizada e sociedade política interagem. Nada mais legítimo do que uma fundação obter a assinatura de um candidato em defesa da sua pauta pelos direitos das crianças – como fez, digamos, Simone Tebet (MDB) na Fundação Abrinq. Ou que apoiadores sentem para discutir a inserção de suas agendas nos programas dos candidatos – como fizeram Lula com o Campo Unitário e Bolsonaro com a Confederação Nacional da Indústria.

Nesse sentido, está em jogo a continuidade mais ou menos normal de disputas. Talvez o mais inusitado, nesse ponto, seja a visibilidade que vêm tendo as disputas internas aos grupos. Não é suficiente falar “do agronegócio”: Lula e Bolsonaro têm entrada em setores específicos do agro, e suas falas sobre o tema, em momento de disputas acirradas, podem afetar alianças. Também se mostra insuficiente falar “dos evangélicos”, pois há preferências entre denominações e lideranças, e uma emergente relevância das evangélicas, no feminino. Divisões internas ganham importância neste cenário de intenções de voto estáveis, no qual os candidatos – principalmente Lula e Bolsonaro – não podem arriscar perder apoios vitais. 

Ainda na toada das disputas por preferências, as candidaturas coletivas são uma entrada interessante para olhar a eleição pela lente dos grupos, que se articulam para ocupar espaços antes destinados a indivíduos. Como mostram análises produzidas para o Observatório das Eleições, foram registradas no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) 213 candidaturas coletivas, em todas as regiões do país. Esse formato vem sendo usado como estratégia para grupos com pouco acesso à política, em especial mulheres e pessoas autodeclaradas pretas, encontrarem caminhos de entrada na política. Caberá observar, nos resultados eleitorais, se a estratégia se refletirá de fato na eleição dos candidatos.

Em paralelo, a eleição de 2022 segue dando sinais de que está em jogo algo diferente do que a pressão por preferências. Protestos já se mostraram relevantes desde o primeiro mês de campanha. Agosto foi marcado pelas cartas em defesa da democracia e pelos atos de lançamento realizados em diversas capitais. Ali se articularam atores coletivos diversos, cuja nova proximidade pode ter usos no futuro próximo, em caso de questionamentos aos resultados das eleições.

Ainda em agosto, aqui e ali, houve protestos contra urnas eletrônicas, que têm potencial de questionar o funcionamento das eleições no país. Setembro começou com as manifestações do bicentenário da Independência, que deixaram evidente o apoio de setores da sociedade à agenda bolsonarista e tiveram forte tom eleitoral. Inúmeros candidatos discursaram nos carros de som, enquanto a multidão em verde-amarelo era pontuada, aqui e ali, por demandas pela intervenção militar e uma perceptível ênfase religiosa que coloca em dúvida o apoio de setores da população à ideia de Estado laico.

A pressão pela democracia, aliada à necessidade de Jair Bolsonaro de não afastar eventuais eleitores moderados, parece ter contribuído para manter certa moderação nas falas do candidato à reeleição. Mas não evitaram frases de questionamento de outros poderes. Não faltaram nos atos de 7 de Setembro menções à Câmara, ao Senado, e ao STF (Supremo Tribunal Federal) – o que levou a multidão a vaiar a Corte: “vocês sabem como funcionam”, disse Bolsonaro. Embates sobre o funcionamento das instituições da República, portanto, estiveram na fala do presidente durante as manifestações transformadas em comício. Enquanto falava dos atos de governo e fazia promessas para um eventual próximo mandato, Bolsonaro tentava dar um ar de normalidade eleitoral ao momento, mas a mistura entre comício e parada militar complica essa narrativa.

No início da campanha, sugerimos que valia atentar para se o pleito reforçaria ou traria alterações ao padrão de protestos no país, que foi reformulado após 2013, tornando-se mais heterogêneo e polarizado, como definiram Luciana Tatagiba e Andréia Galvão. Até agora, não houve alterações relevantes no padrão polarizado anterior. Além disso, a forma dos protestos não foi desafiada – ainda que a relevância dos abaixo-assinados seja interessante e possa apontar para uma redescoberta dessa ferramenta. Por outro lado, a relevância que manifestações nas ruas ganharam durante esta eleição chama a atenção. Caberá refletir, ao fim do período, se as conexões entre protestos e período eleitoral estão sendo reconfiguradas.

Cabe observar se protestos relacionados à eleição nos acompanharão até o final da campanha, em que tamanho e expressão políticas. Vale manter especial atenção para se, com a aproximação do dia das eleições, manifestações de rua se tornarão mais violentas – algo que não pode ser descartado inclusive pelo fato de a posse e o porte de armas durante o dia de votação ser, em si, um tema em disputa. Adicionalmente, há que se atentar para se os resultados eleitorais serão aceitos ou contestados, se essas posições engendrarão outros protestos, e em que escala. Também há que se analisar como as forças que estiveram nas ruas em 2022 – em especial o movimento conservador, que se consolidou como ator importante nos últimos anos – estarão presentes no próximo governo.

 

Com essa agenda em aberto, não parece que as interações entre grupos organizados em ações coletivas para dar visibilidade às suas demandas e expressar a força de seus números sairão de pauta nos próximos períodos.

Priscila D. de Carvalho é pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (projeto Inova Juntos). Pesquisadora associada do INCT Instituto da Democracia. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais, e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Das cartas ao 7 de setembro: protestos e eleições

Das cartas ao 7 de setembro: protestos e eleições

Períodos de eleições gerais tendem a reduzir protestos, porém, podemos estar presenciando uma mudança de padrão no Brasil.

Priscila Delgado de Carvalho, Luciana Tatagiba, Larissa Melo*

Publicado no Jota

Protestos estão na ordem do dia das campanhas eleitorais desde 2018, com o levante das mulheres no #Elenão. A campanha de 2022 já teve cartas em defesa da democracia e verá hoje, no 7 de setembro, um desfile militar que é também local para mobilização e ato de campanha do candidato à reeleição. Com tantos eventos simultâneos, o Dia da Independência traz um bom exemplo de como estão tênues as fronteiras entre formas de ação contenciosa e a institucionalização das disputas que caracteriza as eleições, principalmente em contextos nos quais as próprias regras do jogo são o alvo dos manifestantes.

Eleições são processos rotineiros para seleção das elites políticas, estruturados por regras bem definidas. Já os protestos são a eclosão de demandas por vias extra institucionais, frequentemente protagonizados por grupos que, sem acesso direto ao poder, buscam influenciá-lo a partir da expressão pública de demandas. A literatura de movimentos sociais tem sustentado a hipótese de que protestos em época eleitoral são mais comuns em períodos de transições para a democracia do que no andamento de democracias consolidadas. Nesse segundo caso, a literatura aponta uma tendência de diminuição dos protestos em anos eleitorais, seja porque os movimentos sociais estão eles próprios envolvidos, desde dentro do sistema representativo, com a defesa de candidaturas próprias ou apoio aos seus aliados, seja porque temem que eventuais protestos, ao incorrer em algum tipo de desordem, possam ser usados por seus adversários na disputa. A tendência seria um crescimento dos protestos no primeiro ano de governo, tanto por parte dos que venceram a disputa e vão cobrar a fatura, quanto daqueles que foram derrotados e buscam meios para fazer sua voz ser ouvida.

A pesquisa inédita La Protesta/Brasil – realizada pelo Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Nepac-Unicamp) e pelo INCT – Instituto da Democracia –, sistematizou notícias sobre protestos publicadas na Folha de S.Paulo entre 2011 e 2020 (estamos agora ampliando a base para 2022) e traz elementos interessantes para essa discussão, embora ainda com um recuo temporal que não é suficiente para afirmações definitivas.

Em 2014, houve um terço dos protestos verificados ao longo de 2013, que foi um ano atípico, de todo modo. Em 2018, a redução foi em torno de 10%, quando comparado com o total do ano de 2017. Nos anos posteriores ao pleito, tivemos um alto nível de conflitividade social. Em 2015, os perdedores foram às ruas exigindo o impeachment da presidenta recém eleita. Em 2019, as ruas explodiram com os protestos contra os cortes na educação e a reforma da previdência.

A princípio, esses dados confirmam a tendência geral indicada pela literatura que é de redução de protestos em anos de eleições nacionais. Mas, há elementos novos que podem estar apontando para uma mudança de padrão, precipitada pela ascensão da extrema direita e sua natureza de um governo em campanha permanente. Quando olhamos para as demandas que são levadas para as ruas, vemos que a partir de 2018 as usuais pautas dos movimentos sociais – voltadas a demandas de emprego, saúde, educação, moradia, segurança etc – cedem espaço para reivindicações que miram o próprio sistema político e o jogo eleitoral.

Os registros de 2014 mostram conexão com o padrão de ativismo estabelecido desde a democratização. Entre agosto e outubro, no período eleitoral, sem-teto ocuparam prédios e protestaram por moradias, vizinhos se uniram por saneamento, trabalhadores foram às ruas pelo aumento de salários, mulheres defenderam igualdade de gênero e indígenas pediram melhoria de estradas. O tradicional Grito dos Excluídos, protagonizado por setores católicos e de esquerda, marcou as notícias do 7 de setembro.

Entre 2014 e 2018, há uma visível mudança no perfil dos protestos nos meses de campanha. A eleição de 2018, é bom lembrar, teve elementos inusitados: primeira após um conturbado impeachment, foi marcada pelo afastamento de um dos principais candidatos, com a inviabilização da candidatura de Lula, e pelo atentado à faca ao candidato Bolsonaro, que acabou afastado de boa parte dos debates.

Em 2018, no primeiro dia de agosto registaram-se mobilizações encabeçadas pelos sem-terra, defendendo a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. Seguem os atores clássicos na nova república, porém, a demanda é diretamente ligada à disputa eleitoral. Ao longo dos três meses de campanha, em 2018, mulheres defenderam seus direitos reprodutivos, estudantes pediram verbas para a educação, negros questionaram desigualdades raciais no serviço público: questões e formas de protestos clássicas. Porém, no conjunto dos protestos registrados, o apoio ou a rejeição à candidatura de Lula marcou a agenda de agosto. Em setembro, ganham visibilidade as manifestações protagonizadas por mulheres contra a candidatura de Jair Bolsonaro – no movimento #Elenão – e, em paralelo, outras manifestações de mulheres em apoio ao candidato. Em outubro, a tônica foi de manifestações contra e a favor de Jair Bolsonaro.

Já em agosto de 2022, nota-se reduzido registro de protestos não relacionados às eleições, tais como manifestações por reajuste salarial e paradas LGBT+. A cobertura concentrou-se nas diversas cartas a favor da democracia – assinadas por organizações empresariais, profissionais, mas também por intelectuais, artistas e cidadãos em geral. Além dos abaixo-assinados, ganharam visibilidade os atos de leitura dos textos, combinados a protestos em diversas capitais. Vê-se também movimentos contrários, a exemplo de uma carta de advogados em apoio ao governo Bolsonaro, mas sem a visibilidade obtida pelas anteriores.

Setembro começa com convocações de apoiadores de Bolsonaro para as ruas, no dia 7. Agora é acompanhar se os protestos irão se traduzir em força social capaz de empurrar ainda mais o sistema político para a crise, desacreditando as eleições e, portanto, as possibilidades de saída mediada e não violenta para os conflitos que cortam nossa sociedade, ou se serão paradas patrióticas incorporadas ao repertório do confronto eleitoral das direitas em movimento.
Priscila D. de Carvalho é pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Doutora em Ciência Política pela UFMG.

Luciana Tatagiba, professora do Departamento de Ciência Política, da Unicamp.

Larissa Melo é doutoranda na Unicamp e pesquisadora do tema movimentos sociais e crise da democracia na América Latina.

Entre o “agro” e os “povos do campo”: as disputas em torno da agricultura em 2022

Entre o “agro” e os “povos do campo”: as disputas em torno da agricultura em 2022

Ellen Gallerani Corrêa*

Priscila D. Carvalho**

A cada eleição, setores ligados à agricultura apresentam pautas a candidatos de diferentes colorações políticas. No Brasil de 2022, a dinâmica é outra: as pautas são endereçadas diretamente às candidaturas de preferência. Neste texto, comparamos as demandas de dois setores: o patronal, pela agenda da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), e a dos trabalhadores(as) rurais e povos do campo, reunidos no chamado Campo Unitário. Os documentos deixam visíveis as disputas entre os setores, mesmo quando os grandes temas parecem semelhantes. 

A construção das agendas

O Campo Unitário é formado por mais de 30 organizações, entre elas os Movimentos dos Sem Terra e dos Pequenos Agricultores, Confederação de Extrativistas (CNS) e Conselho de Quilombolas (Conaq), Confederações Sindicais de Agricultores Familiares (Contag) e Assalariados (Contar), e por entidades como a Comissão Pastoral da Terra. A relação do Campo com a candidatura de Lula vai além da apresentação de suas pautas, já que a coalizão participa da construção das diretrizes do programa de governo do candidato. Em conjunto com a Secretaria Agrária e o Núcleo Agrário do PT na Câmara dos Deputados e com o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas Agrícola e Agrária da Fundação Perseu Abramo, o Campo Unitário elaborou  a “Plataforma de Governo dos Povos do Campo, da Floresta e das Águas para Ganhar as Eleições e Governar o País” . No dia 06 de maio, o documento foi entregue a Aloizio Mercadante, coordenador do programa de governo, para uma primeira rodada de discussão e, em 16 julho, houve um segundo encontro. 

A CNA, por sua vez, apresentou uma primeira versão do documento “O que esperamos dos próximos governantes” durante seu Encontro Nacional do Agro, em Brasília, no dia 08 de agosto. Estavam no evento o presidente Jair Bolsonaro e diversos ministros. Eles ouviram de João Martins, presidente da CNA, o apoio à reeleição. Martins conclamou o público a “sinalizar bem claro que não tem mais espaço neste país para uma equipe corrupta e incompetente, e muito menos do retorno de um candidato que foi processado e preso como ladrão”. Desde maio, foram realizados debates para subsidiar o texto, destinado a candidatos à presidência e ao parlamento. Agora, o documento será levado a debate entre as federações estaduais, e a versão final apresentada aos candidatos à Presidência e a parlamentares. 

Os temas

O documento do Campo Unitário é composto por propostas emergenciais, para serem efetivadas nos primeiros seis meses do novo governo federal, e propostas estruturantes para os temas: direito à terra e territórios; fortalecimento da capacidade produtiva da agricultura familiar para a soberania e segurança alimentar; políticas de infraestrutura e qualidade de vida; políticas e direitos para os assalariados e assalariadas rurais; estrutura de Estado para promover e implementar as políticas públicas. São centrais demandas como a demarcação e proteção dos territórios das comunidades tradicionais e a criação ou retomada de políticas públicas para os povos dos campos, das florestas e das águas, principalmente aquelas voltadas à produção e comercialização de alimentos.

O documento da CNA é dividido em quatro eixos: segurança alimentar e desenvolvimento econômico, social e sustentável. Traz, pela primeira vez, sugestões para áreas como economia e políticas sociais, para além da agricultura. Com vistas ao desenvolvimento econômico, defende reformas administrativa, tributária sem onerar o setor agrícola, e política – nessa, contra o financiamento público de campanhas. Para o desenvolvimento social, traz posições sobre educação, segurança em áreas rurais e saúde. Na última, enfatiza avanços na telemedicina.

Alimentos

No Campo Unitário, o debate sobre alimentos tem como foco a segurança e a soberania alimentar – este último, termo difundido pela Via Campesina para falar não apenas do acesso aos alimentos, mas do papel estratégico de agricultores nas decisões sobre a produção. Para garantir segurança e soberania alimentar, demanda-se políticas de estímulo à produção de alimentos saudáveis a partir de modelos produtivos que promovam a sustentabilidade, justiça social e o respeito às matrizes culturais e territoriais. Enfatizam o fomento à produção agroecológica e orgânica, efetivando a Política e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Sobre fertilizantes, demandam a criação de um Plano de fertilização natural e proteção do solo para uma matriz sustentável de bioinsumos e a criação de um plano nacional de produção, conservação, melhoramento e comercialização de sementes crioulas, com a estruturação de Bancos Comunitários de Sementes. Marca-se posição sobre agrotóxicos, sugerindo a revisão da atual política de desoneração e uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNRA). 

Fertilizantes e agrotóxicos também estão no topo da agenda da CNA, mas com a demandas opostas: aprovar a lei de defensivos agrícolas e bioinsumos (PLs 1459/2022 e 658/2021) e ampliar a produção nacional de fertilizantes, reduzindo a dependência externa – tema que ganhou destaque desde a guerra na Ucrânia. O foco aqui é garantir a oferta de fertilizantes, ampliando conhecimento sobre produtos disponíveis no subsolo e estruturando programa para a área – o Profert. Na CNA, estes debates aparecem sob a chave da segurança alimentar, dividida entre os polos da produção – que além dos pontos anteriores inclui irrigação e logística para escoamento dos produtos, apontando a relevância das commodities para a agenda patronal. Para a irrigação, toca-se na crescente demanda por água e aponta-se como solução liberar o uso de áreas de proteção permanente para estruturas de reserva de água. 

O outro polo é o do consumo. Programas de transferência de renda são o caminho para ampliar o acesso das famílias a alimentos – pontuando que sejam transitórios. Já o Campo Unitário enfatiza políticas de compras públicas – o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e a volta da política de estoques públicos de alimentos – que, além da regulação dos preços, permite oferecer comida a populações vulneráveis. Ainda para ampliar a oferta de alimentos, propõe-se estimular as feiras e as cozinhas comunitárias. 

Na área de crédito, o Campo Unitário concentra-se no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar e demanda tanto a ampliação do orçamento quanto a reformulação do programa, visando a distribuição equilibrada dos recursos por região, ampliação do público atendido e maior atratividade de determinadas linhas de crédito (semiárido, microcrédito, agroecologia, bioeconomia, floresta, mulher e jovem). Também pede a retomada do Plano Safra específico para a agricultura familiar, abandonado desde o governo Temer, em 2019. Na CNA, o Plano Safra é elogiado, e demanda-se apoio à ampliação de fontes de financiamento no mercado privado, com redução de custos do financiamento – menores taxas de juros – e redução de custos cartoriais. 

Terra

Nessa discussão, o Campo Unitário visa a garantia do direito à terra e territórios dos povos do campo, das florestas e das águas. Propõe-se a identificação, demarcação, regularização e proteção de terras e territórios indígenas, quilombolas, de comunidades pesqueiras e extrativistas e dos demais povos e comunidades tradicionais. A ênfase nos territórios de povos tradicionais indica a força que tais grupos vêm ganhando nas articulações contemporâneas. Também são requeridas medidas para combater a grilagem de terras públicas e a violência gerada pelos conflitos socioambientais e para proteger os direitos humanos, especialmente de pessoas e comunidades ameaçadas.

A bandeira histórica da reforma agrária é reafirmada, solicitando que sejam destinadas para essa finalidade terras públicas federais e estaduais. Propõe-se a elaboração de um plano nacional com ações, metas e prazos para a criação de  assentamentos, revisão dos índices de produtividade, organização da produção de alimentos saudáveis e acesso a mercados. Chama atenção, contudo, que o plano proposto, apesar de prever metas e prazos, não explicita números para esses objetivos.Também se menciona a regularização fundiária da agricultura familiar – outro dos temas em que as demandas do Campo Unitário e da CNA se mostram diametralmente opostas.

O Campo Unitário expressa divergências com aspectos da Lei nº 13.465/2017 (oriunda da MP nº 759/2016), aprovada pelo governo Temer. A lei anterior, de 2014 (nº 13.001), previa a concessão de créditos de instalação e a conclusão dos investimentos para considerar os projetos de assentamento como consolidados e aptos à titulação. Desde a legislação de 2017, o único critério para a consolidação é de que os assentamentos atinjam o prazo de 15 anos desde a sua implantação. Quando da discussão da MP que originou a lei, as organizações do Campo Unitário manifestaram preocupação com a consolidação, e consequente titulação, de assentamentos com infraestrutura precária, pois isso poderia estimular a transferência de terras para o mercado.  Defendem, ao contrário, que a titulação seja precedida da garantia de infraestrutura e políticas públicas que permitam o pleno desenvolvimento das famílias na área. Outra demanda é pela  autonomia dos(as) assentados(as) e de suas organizações na escolha da forma da titulação – Título Definitivo ou Concessão de Direito Real de Uso individual ou coletivo -, permitindo que seja levada em consideração a organização social e produtiva estabelecida desde o início do assentamento. Pela legislação de 2017, as condições e a forma de outorga dos títulos fica remetida a regulamento. 

A CNA, por sua vez, elogia a aceleração do processo de titulação empreendida desde o governo Temer, e intensificada por Bolsonaro. Demanda, ainda que se acelere a indenização de produtores desapropriados por demarcações de terras e assentamentos de reforma agrária.

Boa parte dos embates, atualmente, passa pelos poderes legislativo e judiciário. Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF)a definição sobre o primeiro item mencionado pela CNA ao falar de regulação fundiária, que é a garantia da tese do Marco Temporal e das “19 condicionantes”. Trata-se da defesa da demarcação de terras indígenas apenas se ficar comprovada a presença dos povos nas áreas em 1988. As condicionantes referem-se às restrições colocadas pelo STF na demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, demandando-se que sejam válidas para todos os processos demarcatórios. O Marco Temporal é objeto também de um Projeto de Lei que tramita no Congresso – projeto este que o Campo Unitário pede que seja “retirado de pauta”, evidenciando as posições opostas sobre o tema.

O tema ambiental, por fim, aparece nos dois documentos, novamente em contraste. No Campo Unitário, entra-se no tema a partir da demanda por políticas de recuperação, preservação e conservação ambiental, geração de energia sustentável e proteção aos biomas. Na CNA, o agro – como se denominam – é apresentado como setor que já atua no desenvolvimento sustentável, mas precisa receber retorno por isso, capitalizar o investimento. Para isso, pedem a implantação da política nacional de carbono e regulamentação do pagamento por serviços ambientais. Simplificação do licenciamento ambiental também é parte da agenda.

A análise das agendas da CNA e do Campo Unitário mostra que ambas apresentam pautas relacionadas ao desenvolvimento econômico, social e ambiental. No entanto, a comparação entre as agendas indica divergências quanto ao significado deste desenvolvimento. As propostas da CNA não colocam questionamentos quanto ao modelo dominante de produção agrícola no país: a grande produção, associada ao uso generalizado de agrotóxicos, e destinada à exportação. As propostas do Campo Unitário tensionam esse modelo. Isto se verifica, por exemplo, na abordagem da questão social e da segurança alimentar. Para a CNA, a questão da segurança alimentar se resolve pela viabilização do consumo por meio de programas de transferência de renda. Além de não mencionar questões sociais específicas do rural brasileiro, a proposta pressupõe que os problemas sociais e de fome no campo são somente uma questão de renda, sem se preocupar em fortalecer a produção das famílias mais vulneráveis. Para o Campo Unitário, o fortalecimento da produção familiar é pauta relevante e deve ser associado ao incentivo à produção de alimentos destinados a grupos mais vulneráveis por meio de políticas como o PAA. Com relação ao meio ambiente, a CNA se concentra em medidas de redução da emissão de carbono e não aborda os impactos ambientais do uso de agrotóxicos. Já o Campo Unitário propõe uma política de redução do uso de agrotóxicos e problematiza seus impactos no meio ambiente e na saúde dos consumidores de alimentos. Em resumo, as intervenções da CNA para pautar os atuais debates sobre alimentação e meio ambiente apontam para a conservação do atual modelo de produção agrícola, enquanto o Campo Unitário procura reformá-lo.

É patente a relevância que a questão dos territórios indígenas ocupa em ambas as agendas, apontando para o deslocamento das questões fundiárias para esta pauta. Contudo, as preocupações são distintas.  No documento do Campo Unitário, as demandas por demarcação e proteção dos territórios já demarcados são reafirmadas diversas vezes. Na CNA, a questão também é relevante, mas o foco é na defesa de medidas que freiem as demarcações em favor da expansão das terras do agronegócio. 

*Ellen Gallerani Corrêa é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas (IFAL). Doutora (2018) e mestre (2012) em Ciência Política pela Unicamp. Pesquisa sobre trabalho e sindicalismo rural, agricultura familiar e movimentos sociais do campo.

**Priscila D. Carvalho é pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Projeto Inova Juntos). Pesquisadora do INCT IDDC. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em Ciência Política pela UFMG.

Votamos sozinhos, mas fazemos política em grupo: ação coletiva e eleições

Votamos sozinhos, mas fazemos política em grupo: ação coletiva e eleições

Priscila Delgado de Carvalho*

Publicado no Mídia Ninja.

 

Nas democracias, o voto é uma opção de cada cidadão e cidadã, individualmente, e os partidos são a forma institucionalizada de agregar suas preferências.

 

A política, porém, é marcada pela associação de pessoas em grupos para defender seus interesses e paixões, promovendo debates, evidenciando posicionamentos e pressionando o sistema político desde a sociedade civil. É comum que haja padrões na articulação desses grupos – por vezes formalizados em associações, por vezes reunidos em coletivos que se agregam temporariamente para responder a temas candentes. Também pode ocorrer que tais padrões se alterem em determinados períodos, e é isso que, parece, estamos presenciando.

 

Para começar, um exemplo muito recente. No Brasil de 2022, vemos articulações em defesa da democracia, com a formação de grupos e a publicação de cartas. Trata-se de agrupamentos informais, puxados por pessoas com visibilidade pública ou por grupos pré-existentes, buscando angariar aliados, influenciar a opinião pública e colocar em pauta as preocupações com o respeito às eleições.

 

Olhar para esses agrupamentos passa por entender quem são as pessoas que articulam cada um deles, que tipo de estratégias e formas de se expressar publicamente adotam, com quais iniciativas anteriores dialogam, com quem estabelecem alianças e como tais alianças os moldam; e se irão dissolver-se após a eleição, ou continuar ativos – perseguindo as mesmas agendas, ou novas. Acompanhar atores coletivos a partir desses questionamentos é o que pretendemos fazer nesta editoria, mas há outros formatos no radar.

Novos padrões de associação

Também estamos interessadas em observar como grupos já estabelecidos vão atuar para impactar debates eleitorais: terão expressão no período sindicatos patronais, do campo e da cidade? E os sindicatos de trabalhadores e centrais sindicais? 

O pano de fundo, para este tema, é que passamos recentemente por uma alteração no padrão de ação coletiva no Brasil. Na década de 1960, em todo o mundo, emergiram movimentos sociais com pautas comportamentais, ambientais e de direitos civis. Na América Latina, essa onda acabou tendo sua expressão relacionada também à defesa da democracia no contexto de embates contra os regimes militares. Houve aqui experimentação de práticas e formas de sociabilidade, aliadas a demandas por liberdades individuais e políticas. Nesse caldo, surgiram movimentos populares nas periferias das cidades e nas áreas rurais, e também movimentos de mulheres e de pessoas negras. Fortaleceu-se o movimento estudantil e o sindicalismo se renovou, aproximando-se do formato de movimento. Grupos organizados foram centrais para a construção da Nova República.

 

Em interessante pesquisa da professora Evelina Dagnino sobre como a democracia era entendida por diversos grupos no Brasil dos anos 1990, foram entrevistadas pessoas com experiência de participação em movimentos sociais de vários perfis (urbanos, ecológicos, de mulheres e negros), sindicatos de trabalhadores e de classe média, associações empresariais. Podemos afirmar que, até o início dos anos 2010, esse perfil associativo manteve-se, possivelmente com a expansão da relevância de organizações não governamentais. Porém, realizar uma pesquisa semelhante no Brasil contemporâneo exigiria incluir outros grupos. Alguns deles que já existiam desde a redemocratização – como grupos assistenciais de diversos perfis, porém ganharam nova visibilidade nos anos recentes. Outros só se formaram recentemente: grupos religiosos evangélicos a favor de pautas conservadoras ou em defesa de agendas progressistas, grupos conservadores de direita com diferentes intensidades ideológicas. Ou, ainda, trabalhadores organizados não em sindicatos, mas em articulações de caminhoneiros, de entregadores de aplicativos. E, por fim, mas não menos impactantes, há grupos que defendem expressamente o fim da democracia, algo praticamente impensável no início da Nova República.

Protestos

De forma geral, não apenas o cenário associativo tem se transformado, mas também o cenário de protestos. Analisando atores mobilizados e suas reivindicações a partir de notícias publicadas por jornal de circulação nacional, as pesquisadoras Luciana Tatagiba e Andreia Galvão encontraram, a partir dos protestos massivos de 2013, um novo padrão de mobilização que combina duas dinâmicas: a polarização política e a heterogeneização de atores e reivindicações. Conflitos clássicos, com aqueles relativos a classes sociais, seguem relevantes e atores como os sindicatos são centrais na organização de atos e protestos; porém, passam a conviver com outras agendas relativas à defesa de identidades políticas – mulheres, negros, LGBTQIA+, entre outros.

O tema dos protestos se atualiza em período eleitoral: haverá protestos em 2022? Que formato terão e por quem serão organizados? Quais temas que emergirão durante as campanhas e levarão grupos a se posicionar: possivelmente o aborto já se delineia como um deles, mas haverá outros? 

 

Aparentemente, será mantido o padrão de polarização, com as ruas ocupadas por linguagens, cores e bandeiras concorrentes. Serão esses protestos semelhantes ou diferentes dos que vimos em 2018? Que lugar ocuparão as mulheres? Que locais cada grupo escolherá para se manifestar, buscando ativar quais cadeias de sentidos e símbolos? Em cada um desses protestos, qual será o papel de grupos tradicionalmente organizados, como sindicatos e centrais sindicais, movimentos sociais populares, frentes – serão retomadas a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo, que foram atores coletivos importantes a partir de 2016?

 

Candidaturas coletivas

 

Grupos emergiram na sociedade civil tentando influenciar o perfil e a qualidade do debate político desde as eleições de 2016. Há institutos e ONGs formando potenciais candidatos, feministas buscando pautar suas preocupações em candidatas de diferentes colorações ideológicas, e houve a emergência de candidaturas coletivas. Segue em aberto a questão sobre se essas iniciativas vão manter-se, reinventar-se, ou desaparecer neste processo eleitoral. 

Cada um desses temas é uma porta de entrada para a questão dos grupos na política. Sua presença gera tensões entre teóricos há tempos: uma das expressões conhecidas está nos textos dos Federalistas norte-americanos, preocupados com encontrar formas de conter a concentração de poder em grupos pequenos mas capazes de influenciar desproporcionalmente a política e desestabilizar o jogo democrático. Sendo indesejável eliminar a liberdade da organização em grupos, a solução proposta no Federalista n. 10 foi a de controlar seus efeitos, seja pela eleição de representantes, pelo papel de regulação dos interesses exercidos pelo legislativo, seja pela garantia da existência de uma variedade de grupos, capazes de evitar que um deles se torne demasiado influente. Mais de 100 anos depois, a quantidade de temas relacionados com a articulação de pessoas em coletivos mostra que os temas em disputa e o perfil dos grupos podem ter mudado imensamente, mas a ação coletiva continua premente na política contemporânea.

 

*  Pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Inova Juntos). Pesquisadora do INCT IDDC. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em Ciência Política pela UFMG.