O que esperar da disputa eleitoral no Senado?

O que esperar da disputa eleitoral no Senado?

Carlos Ranulfo Melo*

A eleição de 2018 renovou mais de 80% das 54 vagas disputadas no Senado, alterando o perfil da casa ao trocar políticos experientes por uma leva de novos representantes. Em 2022 a renovação, ainda que deva ser expressiva, terá menor impacto devido ao menor número de vagas em disputa. A novidade para 2023 vai estar na correlação de forças entre os partidos.

A tabela 1 mostra como a composição partidária do Senado foi fortemente modificada ainda no curso da atual legislatura. Enquanto o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) manteve sua bancada, o Partido Social Democrático (PSD) e, em especial, o Partido Liberal (PL) cresceram de forma expressiva. Tal como ocorreu na Câmara dos Deputados,  rendeu frutos a opção de Bolsonaro pelo partido de Valdemar da Costa Neto – um dos demônios que, segundo recente declaração da primeira-dama, andaram circulando pelo Planalto. 

Tabela 1

Bancadas no Senado – 2019 e 2022

 

PARTIDO Bancada na posse (2019) Bancada atual
MDB 12 12
PSD 7 12
PL 2 9
PODEMOS 5 8
PT 6 7
PP 5 7
PSDB 9 6
DEM 6 6 (União Brasil)
PSL 4
PDT 4 4
PTB 3 2
PROS 1 2
REDE 5 1
CIDADANIA; PSB 2 cada 1 cada
Republicanos; PSC 1 cada 1 cada
PHS 2
SD; PTC e PRP 1 cada
Sem partido 1 1

 

Rede e Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) tiveram reduções expressivas em suas bancadas. O União Brasil não se materializou como a soma das bancadas do Democratas  e do Partido Social Liberal (PSL) graças, novamente, ao peso do atual Presidente da República. Solidariedade, Partido Trabalhista Cristão (PTC), Partido Republicano Progressista (PRP) e Partido Humanista da Solidariedade (PHS) perderam representação.

A troca de legendas entre os senadores favoreceu os partidos alinhados à direita, que passaram a controlar 60,5% dos mandatos ao invés dos 48,1% de 2019. O forte crescimento do PL fez com que o Centrão – aí incluídos também o Progressista (PP), Republicanos, Partido Social Cristão (PSC) e Trabalhista Brasileiro (PTB) – passasse a responder por 40,8% desse total (20 senadores em 49). Os partidos situados a esquerda – Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Democrático Trabalhista (PDT), Socialista Brasileiro (PSB) e Rede – recuaram de 21% para 16%. Ao centro – MDB, PSDB, Cidadania e SD – observou-se recuo semelhante, de 29,6% para 23,5%.

A essa altura do campeonato, o cenário eleitoral para o Senado ainda traz muitas incertezas. São escassas as pesquisas disponíveis e em diversos estados o quadro das candidaturas sofreu alterações de última hora, com nomes de peso entrando ou saindo da disputa. Não obstante,  é possível falar em tendências gerais com base no que se sabe até o momento.

O MDB tem 4 vagas em disputa – nos estados da Paraíba, Pernambuco, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo. Nos dois primeiros não lançou candidato e no terceiro o nome apresentado não tem chance contra a ex-ministra Teresa Cristina (PP). No último, a senadora Rose de Freitas enfrentará acirrada disputa com candidatos do PL e Republicanos. Apenas em Alagoas o partido é favorito. A menos que algum azarão desponte por aí, a tendência é de diminuição da bancada.

Ainda ao centro do espectro partidário, o quadro tampouco é animador para a federação PSDB/Cidadania. Os tucanos perderão José Serra e Tasso Jereissati. Seu candidato é pouco competitivo em São Paulo e no Ceará o partido não lançou ninguém.  As perdas poderão ser parcialmente compensadas em Goiás,  onde Marconi Perillo é forte concorrente, e no Amazonas, estado em que a disputa com o PSD, do senador Omar Aziz será dura. O Cidadania deve apenas manter a senadora Eliziane Gama, cujo mandato vai até 2027.

A esquerda tem chances de crescer, mas não haverá um grande salto. O PSB deve perder a cadeira em Santa Catarina, onde a direita domina o jogo. A perda tende a ser compensada por Flávio Dino, favorito no Maranhão. A vitória também é possível com Marcio França, que pode ser beneficiado pela divisão da direita paulista, entre Janaína Pascoal (PRTB) e Marcos Pontes (PL). Mas no Rio de Janeiro, a candidatura de Alessandro Molon (PSB) será prejudicada pela divisão na esquerda. O partido tem ainda boas chances em Sergipe e na Paraíba.

Pelo PDT o senador Acir Gurgacz concorrerá à reeleição em Rondônia, numa disputa ainda em aberto contra candidatos do PP e do Republicanos. O partido tem boa chance no Rio Grande do Norte, onde disputa a cadeira na chapa da governadora petista – o que, por sua vez, levou o PT a desistir de tentar a reeleição do senador Jean Paul Prates.

Os petistas são favoritos no Piauí e no Ceará, com Wellington Dias e Camilo Santana. Em Pernambuco, Tereza Leitão lidera em empate técnico com nomes do PL e PSD. No Pará, com a desistência do senador Paulo Rocha, o candidato do partido concorre em desvantagem com nomes de maior projeção do PL e do PP. No Acre, a substituição de Jorge Viana, lançado a governador, por Nazareth Araújo diminuiu as chances da legenda. No Rio Grande do Sul, Olívio Dutra terá a difícil tarefa de superar os favoritos Ana Amélia (PSD) e Hamilton Mourão (Republicanos).

A direita deve crescer. A começar pelo Centrão, o PL encontra-se a frente no Mato Grosso e no Rio de Janeiro, estados onde tem vagas em disputa. Sua bancada pode aumentar em função do forte investimento feito pelo bolsonarismo. No Distrito Federal Flávia Arruda lidera. No Rio Grande do Norte, Rogério Marinho persegue o candidato do PDT. O partido tem ainda candidatos competitivos no Acre, Pernambuco, Pará, Espírito Santo, São Paulo e Santa Catarina. 

Nos quatro estados onde suas vagas estão em disputa, o PP não concorre no Acre, tem nome pouco competitivo em Sergipe e enfrenta situação muito difícil no Piauí. Tem boas chances apenas no Tocantins, com a senadora Katia Abreu. É favorito no Mato Grosso do Sul. Tem ainda candidatos competitivos no Pará, Rondônia e Roraima, estados onde o quadro está indefinido. 

No Republicanos, Hamilton Mourão é quem tem mais chances. Damares Alves pode crescer no Distrito Federal. No Espírito Santo o candidato é competitivo e em Rondônia está no bolo. Ainda no Centrão, o PTB deve perder sua bancada e o PSC tem chance em Minas.

Na direita não necessariamente vinculada ao bolsonarismo, o PSD pode manter os três estados em que seus mandatos estão em disputa, com destaque para Otto Alencar na Bahia. No Amazonas e em Minas Gerais seus candidatos dividem o primeiro lugar com nomes do PSDB e PSC. No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina o partido está na frente, isolado ou em empate técnico. 

O União Brasil perderá a cadeira no DF, mas deverá manter no Amapá. Disputa o primeiro lugar no Tocantins e no Paraná. Tem nomes competitivos na Paraíba e no Acre. O Podemos perderá a vaga no Rio Grande do Sul e no Paraná Álvaro Dias enfrenta Sergio Moro. O PRTB só tem chance em São Paulo.  

Feito esse balanço, cabe destacar que o crescimento da direita deverá fazer com que, pela primeira vez desde 1986, um partido situado nesse lado do espectro ideológico conquiste a maior bancada no Senado, desbancando o MDB. PL e PSD são os candidatos ao posto. Por fim, é pouco provável que o Centrão cresça muito além do que já tem devido às mudanças de partido ocorridas ao longo da legislatura. E isso porque os partidos do bloco não conseguiram coordenar suas estratégias eleitorais. Desse modo, em pelo menos seis estados  – DF, SP, ES, PA, RO e MT – seus candidatos estão em disputa direta pela vaga, o que, é evidente, abre espaço para outros partidos.

 

*Carlos Ranulfo Melo é doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.

O que está em jogo nas eleições de 2022: centro-direita

O que está em jogo nas eleições de 2022: centro-direita

O peso que os partidos MDB, PSDB, PSD e União Brasil terão no jogo político a partir de 2023 ainda é uma incógnita 

Carlos Ranulfo Melo*

Vamos aos fatos: uma eventual coligação PSDB (em federação com o Cidadania), MDB, PSD e União, dotada de ramificação em todo o território nacional, contando com vultosos recursos do Fundo Eleitoral e um enorme tempo para a propaganda gratuita, poderia ter impacto eleitoral. Partindo desse pressuposto, a questão é saber por que a centro-direita brasileira não conseguiu se articular e apresentar uma candidatura competitiva para as eleições.

A resposta passa, em boa parte, pela situação do sistema partidário brasileiro, que se encontra em estado de fluxo – não é mais o que era até 2014 e não se pode afirmar com certeza como será. A crise emitiu seus primeiros sinais nas manifestações de 2013, quando o veto à participação dos partidos nos protestos sinalizou para uma demanda não satisfeita pela representação política vigente. 

A isso seguiram-se a recessão do biênio 2015/2016, a Operação Lava Jato e as manifestações contra o governo eleito em 2014 que, somadas à ação estratégica de lideranças do Congresso, de setores do Judiciário e da sociedade civil, “autorizaram” a transformação das chamadas pedaladas fiscais em crime de responsabilidade e forneceram a cobertura legal ao impeachment de Dilma Rousseff. 

O resultado eleitoral de 2018 agravou a crise. Tucanos e emedebistas, atingidos por desdobramentos da Lava Jato, foram engolidos pela maré antipolítica. Carente de base social, o PSDB perdeu seu mais valioso ativo nos últimos anos, o antipetismo, e ficou sem ter onde se apoiar. A “fórmula mágica” do MDB, sucesso nas disputas para os governos estaduais como caminho para alcançar bancadas fortes em Brasília, deixou de funcionar. A legenda perdeu o lugar de ator pivotal no Congresso, que passou a ser ocupado pelo bloco impropriamente chamado de Centrão que, por sua vez, foi “alugado” por Bolsonaro. Tentando manter-se à tona, lideranças do DEM encaminharam uma fusão com o PSL. O ajuntamento pragmático daí criado, o União Brasil, foi parcialmente desidratado pelo bolsonarismo.

Um sistema partidário se define pela interação entre seus principais membros, em especial, no que se refere à disputa do governo central. A chegada de Bolsonaro à Presidência da República interrompeu o padrão de alternância existente até então – entre coalizões de centro-esquerda e centro-direita – e teve profunda repercussão sobre os partidos e suas interações.

Como resultado, o sistema partidário que orbitava em torno de PT, PSDB, MDB e, em menor grau, do DEM, deixou de existir. Somente o PT resistiu ao “tsunami” graças a seu enraizamento em parcela do eleitorado e, especialmente, ao prestígio de Lula. A centro-direita, por sua vez, foi fortemente atingida e se desorganizou por completo. Essa foi a principal consequência da crise.

Na ausência de um partido capaz de assumir protagonismo a partir do centro, a eleição de 2022, como seria de se esperar, mantém o padrão de 2018. O país já havia experimentado, em 1989, uma eleição em que o centro político – à época representado pelo PMDB – não se revelara minimamente competitivo. A diferença é que em 2022, ao contrário do que ocorreu em 1994, o centro não teve forças para se reapresentar e atrair parte da direita.

Esta é a razão pela qual a chamada terceira via nunca passou de uma ilusão. Os partidos que poderiam lhe conferir musculatura – MDB, PSDB, União Brasil e PSD, simplesmente não tinham capacidade e unidade para tanto. O atual quadro torna isso claro.

O PSDB sequer conseguiu manter sua candidatura. Seu apoio à candidata do MDB não revela qualquer entusiasmo e o mais provável é que seus candidatos nas distintas seções estaduais tratem de cuidar de sua sobrevivência, em muitos casos sem se preocupar em demarcar com o bolsonarismo, como é o caso da disputa pelo governo de São Paulo. O MDB, por sua vez, está notoriamente polarizado pela candidatura do Lula. O PSD, definido desde o berço como uma legenda que não é “de direita, de esquerda, nem de centro”, confirmou que não é mesmo nada além de um aglomerado de forças regionais de olho em algum espaço na esfera federal. Incapaz de se definir, divide-se entre Lula e Bolsonaro, a depender das circunstâncias. O mesmo vale para o União Brasil: em Goiás e no Mato Grosso seus candidatos a governador apoiam Bolsonaro; no Piauí e na Bahia não querem o atual presidente no palanque e no Ceará o capitão Wagner não diz nem sim nem não. Sacramentando a “união”, Bivar, o presidente do partido decidiu apoiar Lula e ainda especulou com a possibilidade, de resto inexistente, de levar a sigla para o mesmo caminho.

O que acontecerá com o sistema partidário a partir do ano que vem depende de vários fatores, entre os quais o desfecho da disputa pela Presidência da República. O que parece certo é que PP, PL e Republicanos irão crescer; afinal contam com vultosos recursos governamentais, verba das emendas de relator e uma candidatura competitiva à Presidência. O mesmo deve ocorrer, ainda que em menor proporção, com a esquerda, pela força das federações e devido ao “efeito arraste” de Lula. O peso de MDB, PSDB, PSD e União Brasil no jogo político a partir de 2023, no entanto, é uma incógnita; depende da sorte de seus candidatos a governador – mas isso é outra história.

*Carlos Ranulfo Melo é doutor em ciência política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de “Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados”, coautor de “Governabilidade e Representação Política na América do Sul” e coeditor de “La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI”. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.Carlos Ranulfo Melo

A batalha pelo Legislativo

A batalha pelo Legislativo

A batalha pelo Legislativo

Por Carlos Ranulfo Melo*

Publicado no jota.info

A conquista de bancadas expressivas no Congresso, e em especial na Câmara dos Deputados, sempre foi fundamental no Brasil. As razões para tanto são claras. De um lado, o acesso a recursos vitais para os partidos depende do tamanho das bancadas eleitas para a Câmara dos Deputados. De outro, nosso presidencialismo é, sempre foi e continuará sendo, um regime que demanda a montagem de coalizões para funcionar a contento. 

A novidade dos últimos anos, e de 2022 em particular, é que a importância da batalha pelo Legislativo Federal aumentou e muito. E isso vale para os dois aspectos acima ressaltados. 

Do ponto de vista dos recursos, além do fundo partidário e do horário de propaganda gratuita – repartidos de forma proporcional ao tamanho das bancadas eleitas para a Câmara – a força dos partidos no Congresso passou a definir, desde 2017, a divisão do fundo eleitoral, cujo montante disponibilizado saltou de R$ 1,7 para R$ 4,9 bilhões de 2018 a 2022. A distribuição dos recursos inovou ao considerar o Senado: 15% do total é distribuído proporcionalmente às bancadas eleitas em 2018, agregados aos senadores em cumprimento do segundo quadriênio. Mas o papel da Câmara continuou decisivo: 35% dos recursos são distribuídos proporcionalmente aos votos obtidos na eleição de 2018  entre partidos que tenham conquistado pelo menos uma cadeira; outros 48% dependem do tamanho das bancadas eleitas. 2% são distribuídos igualmente entre todas as legendas registradas no TSE.

A segunda razão pela qual a batalha pelo Legislativo assume hoje maior relevância do que antes está em mudanças nos dois pilares que contribuíram para o funcionamento do presidencialismo de coalizão no país desde a redemocratização: o controle da agenda decisória pelo poder Executivo e da dinâmica legislativa pelos líderes partidários.

A dinâmica legislativa foi fortemente afetada pelo aumento na fragmentação partidária. Tal processo exigiu coalizões de governo mais amplas. Especialmente na Câmara, as grandes bancadas gradativamente perderam peso e a cena legislativa passou a depender das pequenas e médias. A dispersão do poder “inchou” o Colégio de Líderes, diminuindo sua capacidade de coordenação e negociação. Os líderes, com menos poder e menor capacidade de atender as demandas, perderam força relativamente aos membros de suas bancadas. O grau de disciplina nas votações diminuiu. Nas coalizões de governo aumentou o “poder de chantagem” de cada membro. Cresceu o peso dos blocos partidários, em detrimento dos partidos, elevando o grau de incerteza na definição da Mesa Diretora, como evidencia a ascensão de Eduardo Cunha e Artur Lira. Em ambos os casos, a conquista da Presidência da Câmara baseou-se em acordos feitos “cabeça a cabeça”, à revelia dos líderes. E a posterior condução dos trabalhos revelou uma centralização e um protagonismo inéditos na condução da agenda legislativa.

Paralelamente ao aumento da fragmentação partidária, o Congresso foi assumindo maior protagonismo na produção legislativa. Desde 2007 a maior parte da legislação aprovada no Congresso passou a ter origem na iniciativa dos parlamentares, e não do Executivo, invertendo o quadro prevalecente desde a promulgação da Constituição.

Trata-se de um processo de mudança institucional incremental, calcado em pequenas modificações nas regras e/ou mudanças na interpretação das regras existentes. As duas modificações mais expressivas se deram na tramitação das Medidas Provisórias (MPs) e no processo orçamentário. No primeiro caso, Michel Temer, quando presidente da Câmara em 2009, passou a considerar que o trancamento da pauta, medida que facilitava o controle da agenda pelo Executivo,  deveria valer apenas para matérias relacionadas à temática da MP. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que as Medidas Provisórias (MP) deveriam obrigatoriamente passar por uma Comissão Mista – algo previsto, mas nunca efetivado no Congresso. Finalmente, em 2015, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade permitiu ao Presidente da Câmara decidir, de ofício, o que é ou não matéria estranha à MP. A sequência de modificações aumentou o poder de barganha do legislativo vis a vis o Executivo.

As modificações no Orçamento viriam a ter impacto ainda maior. Desde 2015, a execução das emendas individuais dos congressistas deixou de depender do arbítrio do Executivo para tornar-se obrigatória. O mesmo aconteceu com as emendas de bancada. Em 2019, o Congresso transformou as “emendas do relator”, que até então se destinavam a corrigir erros ou omissões de ordem técnica ou legal, em um mecanismo que confere ao relator da Lei Orçamentária o direito de encaminhar emendas que precisam ser priorizadas pelo Executivo. Tal inovação, ao invés de referir-se às emendas já aprovadas, abriu espaço para que o Congresso abocanhasse uma maior fatia do orçamento; uma fatia cujo valor total a ser empenhado equivale à soma das emendas individuais e de bancadas.

De um ponto de vista mais substantivo, a sequência de mudanças no processo orçamentário turbinou o particularismo na distribuição dos recursos da União – ao invés de uma distribuição feita com base em critérios nacionalmente definidos, prevalece uma lógica onde cada congressista destina recursos para sua base eleitoral prioritária. Do ponto de vista da relação entre os poderes, as mudanças no orçamento, assim como no caso das MPs, tornaram menos potente a “a caixa de ferramentas” do Executivo para lidar com o Legislativo.

Levando em conta todas as mudanças, o que se tem hoje é um Legislativo dotado de maior protagonismo, capaz de formular e implementar sua própria agenda e menos dependente do Executivo.  O quadro desenha-se com mais nitidez na Câmara com a formação de uma coalizão legislativa majoritária de centro-direita. Por ocasião do segundo mandato de Dilma tal coalizão operou contra o governo. Sob Bolsonaro, garante a sua sobrevivência, mas opera sob prioridades internamente definidas e é capaz de impor limites ao Executivo – não é à toa que o atual presidente é o recordista em vetos derrubados na Nova República. Nos dois momentos, a coordenação de tal coalizão coube a um presidente da Câmara regimentalmente cada vez mais poderoso. Ao direito de iniciar os processos de impeachment, a gestão de Artur Lira acrescentou à “caixa de ferramentas” da Presidência um controle ainda maior sobre a agenda – consubstanciado na redução da capacidade de obstrução da minoria, e na expansão das iniciativas votadas em urgência e das votações remotas – e a prerrogativa de indicar o relator da Comissão Mista do Orçamento, nos anos em que tal decisão cabe à Câmara.

 

A governança tornou-se mais complexa. As mudanças na relação entre Executivo e Legislativo são de difícil reversão. Poder não se devolve facilmente. Em tese, um Legislativo dotado de maior protagonismo e autonomia é bom para a democracia. Mas combinado com uma hiper centralização nas presidências das casas e com a exacerbação de uma dinâmica particularista pode tornar-se um elemento de instabilidade. Supondo, como indicam as pesquisas, que Bolsonaro seja derrotado, a batalha pelo Legislativo torna-se crucial, começando pelas eleições de outubro próximo e continuando na definição das presidências de Câmara e do Senado.

*Doutor em Ciência Política e professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG.