Fabíola Brigante Del Porto

Publicado no NEXO

Série de pesquisas se debruça sobre a relação dos brasileiros com a democracia. Resultados revelam disposição da população para defender regime

Em nenhum outro momento da história política recente do país prestou-se tanta atenção nos humores do eleitorado como em 2022. Analistas e jornalistas passaram os últimos meses debruçados sobre pesquisas de opinião pública para tentar compreender o que está acontecendo com os eleitores brasileiros. As pesquisas de intenção de voto, inclusive, transformaram-se em assunto de batalha política, com os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro buscando desacreditar os resultados divulgados pelos principais institutos do país.

O fato é que as pesquisas contaram a história de um governo mal-avaliado e que cotidianamente agrediu as instituições democráticas. A série de pesquisas “A Cara da Democracia”, realizada pelo INCT-IDDC (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação), contribuiu muito para a compreensão dos últimos quatro anos no Brasil. No último levantamento, realizado entre 9 e 14 de setembro, a relação dos brasileiros com a democracia foi objeto de análise.  

Na eleição em que mais nos preocupamos em defender a democracia desde o fim do regime militar, a pesquisa revela que não chega a 30% o percentual de brasileiros completamente dispostos (em uma escala de 1 a 10 dão a nota máxima) a participar de manifestações para defender “direitos democráticos”. Para comparação, a mesma pesquisa mostra que 53% dos entrevistados se dispõem a participar de protestos contra a corrupção. E isso (a baixa disposição dos cidadãos em participar de manifestações em defesa da democracia) ao mesmo tempo que a pesquisa aponta que quase 70% dos brasileiros preferem sempre a democracia (um aumento de dez pontos percentuais em relação à onda de junho de “A cara da democracia”), mas discretamente inferior ao apurado pelo Instituto Datafolha em agosto, na sequência das cartas, atos e manifestos de diferentes entidades da sociedade civil em defesa da democracia.

Para mantermos algum otimismo com relação à disposição da sociedade brasileira em protestar para defender os direitos democráticos, há que se considerar que, se comparado à pesquisa do Latinobarómetro do final de 2013, ano em que ocorreram no país as “manifestações de junho”, o resultado atual mostra um aumento (também de dez pontos percentuais) na disposição dos brasileiros. Em 2013, o percentual de menos de 20% de entrevistados que apontava estar “completamente disposto” a participar de manifestações em defesa de direitos democráticos pode ser atribuído ao nosso otimismo com os sinais da consolidação da democracia brasileira, quando não víamos necessidade nesse engajamento, pois a democracia não estava em xeque. A própria explosão de manifestantes nas ruas naquele ano, apesar da enorme insatisfação que revelava, foi vista, em princípio, como expressão de uma democracia viva. 

A disposição dos cidadãos em se manifestar em defesa de direitos democráticos começou a aumentar em 2015, em um cenário em que a democracia brasileira passava a sofrer solavancos, ameaças e instabilidades. Em 2020, após dois anos de governo Bolsonaro e seus retrocessos, essa disposição atingiu o mais alto patamar na série de pesquisas disponíveis, com um em cada três brasileiros dando a pontuação máxima na escala de disposição em defender a democracia em protestos. O resultado mais recente da pesquisa “A cara da democracia” mostra, portanto, uma ligeira oscilação negativa nessa disposição (de 32% para 27,3%), ainda que muito próxima das margens de erro dos levantamentos. Ao lado disso, outro ponto chama a atenção negativamente nos dados atuais: em 2022, o percentual dos que não estão nem um pouco dispostos a participar de protestos para defender a democracia é de 30%, o mais elevado desde 2013, porcentagem ainda mais expressiva quando comparada ao levantamento do Latinobarómetro de 2020, quando apenas 15% dos entrevistados atribuíram essa mais baixa pontuação à sua disposição em defender “direitos democráticos”.

 

No período 2013 a 2020, ainda de acordo com levantamentos do Latinobarómetro, os brasileiros mostraram maior disposição em protestar por preocupações mais concretas, como melhores serviços de saúde e de educação, melhores condições de trabalho e salários mais elevados (infelizmente, não temos dados sobre isso na mais recente pesquisa para comparar). Essas questões, desde o início da democracia recente, são temas que traduzem expectativas dos cidadãos com relação aos governos democráticos, mas que não são percebidas por aqueles como possíveis definições da democracia. Resultados do Estudo Eleitoral Brasileiro, realizado pelo Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), para 2014 e 2018, mostraram que, quando pedidos para definir a democracia em suas palavras, quase metade dos entrevistados não foi capaz de dar alguma resposta e, entre os que o fizeram, as maiores menções se referiam a procedimentos, como o direito de voto, e a liberdades. Isso sugere que, para grande parte dos brasileiros, a democracia parece mais uma abstração ou uma formalidade. 

 

Quando, na nova pesquisa “A cara da democracia”, cruzamos a preferência por regimes e a disposição em participar de protestos para defender a democracia, observamos que, entre os quase 70% que preferem este regime, a disposição em defendê-lo é apenas um pouco mais elevada do que a dos que acham que “a ditadura pode ser melhor em certas circunstâncias” e a daqueles que acham que “tanto faz o regime” – entre os que se dizem “democráticos”, apenas três em cada dez respondem estar “completamente dispostos” a defender a democracia; nos outros dois grupos a proporção é de dois para cada dez.

Paralelamente à baixa disposição dos entrevistados em defender o regime democrático (e, mais notadamente, a dos que acreditam na superioridade deste regime), o resultado que mais chama a atenção na pesquisa recente aparece quando desagregamos os dados de disposição em participar de manifestações para defender “direitos democráticos” pelas clivagens marcantes da atual polarização da política brasileira – bolsonaristas e petistas – e isolamos esses grupos (que reúnem 15,7% e 13,5% dos entrevistados, respectivamente) do restante dos eleitores. Primeiramente, é notável que o grupo que não se identifica nem com o bolsonarismo nem com o petismo é o que responde em menor proporção estar “completamente disposto” a defender a democracia em protestos (21,6%). Porém, o que intriga observar é que, entre as duas clivagens da polarização política, o percentual de bolsonaristas que se diz totalmente disposto a defender “direitos democráticos” é mais elevado do que o de petistas (45,6% e 35,3%, respectivamente). 

Por mais que esse resultado possa, de início, nos surpreender, é preciso considerar que o próprio presidente Jair Bolsonaro diz defender a democracia desde seu discurso de posse e, mesmo quando afronta as instituições, o Supremo Tribunal Federal em particular, o faz sob a alegação de que “todos precisam jogar dentro das quatro linhas da constituição”. 

Ainda, em 2018, não obstante a questão democrática tenha sido tratada como uma questão de menor importância na decisão eleitoral, pesquisa do Datafolha realizada na véspera do segundo turno, mostrava que 41,4% dos brasileiros consideravam Bolsonaro o candidato mais autoritário, e, ao mesmo tempo, o que mais defenderia a democracia (considerando aqui os que responderam “não sei”, “nenhum” e “os dois”. Excluídos esses, a porcentagem chegava a 47,4%). Entre os que declaravam o voto em Bolsonaro, esse percentual atingia 66,4% (do mesmo modo, considerando os que responderam “não sei”, “nenhum” e “os dois”. Excluídos esses, o percentual atingia 78,8%). Vale dizer, para grande parte de seus eleitores, parecia não haver contradição ou incongruência entre o líder/candidato ocupar os dois papéis simultaneamente.

Após parte significativa dos brasileiros ter relevado as características autoritárias de Jair Bolsonaro na eleição de 2018, os resultados desta rodada de “A cara da democracia” nos alertam para o fato de que enquanto é baixa a nossa disposição em nos mobilizar em defesa de “direitos democráticos”, o campo bolsonarista (por menor que ele ainda seja) se mostra disposto a fazê-lo.

Sabemos que o conceito de democracia pode ter interpretações, para dizer o mínimo, bastante controversas. Lembremos, por exemplo, que o golpe militar contra o então presidente da República, João Goulart, em 1964, foi dado em nome da democracia, visão reproduzida em março último, 58 anos depois, com a publicação, por parte do Ministério da Defesa, da “Ordem do Dia alusiva ao dia 31 de março”. Afinal, especialmente para a nossa recente trajetória política pós-Constituição de 1988, o que é democracia e quais são os direitos e valores que devem ser defendidos?

 

Fabíola Brigante Del Porto é graduada em ciências sociais, mestre e doutora em Ciência política pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). É pesquisadora do Cesop (Centro de Estudos de Opinião Pública), da Unicamp, e editora-assistente da Revista Opinião Pública, publicação deste centro de pesquisa.