Viviane Gonçalves Freitas, Flávia Biroli e Pedro Paulo Assis

Publicado no Jota

Desigualdades persistentes podem marcar a representação política. Isso ocorre quando as vantagens acumuladas socialmente se transformam em recursos políticos simbólicos e materiais. Esses recursos são múltiplos: tempo, redes de contato, dinheiro para campanha, apoio de políticos já investidos de cargos e dos partidos. As ocupações declaradas por candidatas e candidatos são uma das evidências que podem nos ajudar a compreender como essas desigualdades se expressam. É disso que tratamos neste artigo, ao analisar as candidaturas aos legislativos estaduais e à Câmara dos Deputados. Como se verá, o perfil das candidaturas revela uma das maneiras pelas quais as intersecções de raça, classe e gênero reforçam desvantagens. 

Nas eleições de 2 de outubro, das 9.851 candidaturas a deputado federal e das 16.369 candidaturas a deputado estadual, aproximadamente 65% são de homens e 35%, mulheres. Na disputa federal, 51% das candidaturas são brancas e 49%, negras, enquanto, nos pleitos estaduais, 47% são brancas e 53%, negras. A ocupação que concentra o maior número de candidatas nas eleições de 2022 é a de empresária. Entre as candidatas a deputada estadual, 9,1% são empresárias, com uma prevalência maior entre as mulheres brancas (13,8%). No caso das candidatas à Câmara dos Deputados, a média geral é semelhante à das candidaturas estaduais (9,6%), com porcentagens ainda maiores entre as mulheres brancas (11,7%). Trata-se de um perfil que remete mais à composição socioeconômica e de classe dos legislativos do que à de gênero, especificamente. Isso porque, entre os homens, a ocupação declarada pelo maior número de candidatos também é a de empresário. Entre homens brancos, essa proporção chega a 15,4% dos candidatos a deputado estadual e 15,6% dos candidatos a deputado federal. 

A segunda ocupação com maior concentração entre as candidaturas é a de advogada/o, semelhante para mulheres e homens. Entre elas, 5,9% das candidatas aos legislativos nos estados e 7,7% das candidatas ao legislativo federal declararam essa ocupação; entre eles, 6,7% e 8,5% fizeram essa declaração, respectivamente. Vale observar que os percentuais são mais próximos entre mulheres negras e homens negros e entre mulheres brancas e homens brancos, indicando que o perfil ocupacional varia, nesse caso, sobretudo de acordo com raça. Entre as candidaturas de pessoas brancas a deputado federal, 10,4% dos homens e 10,5% das mulheres declararam ter a advocacia como ocupação. Se observarmos a candidatura de pessoas negras ao mesmo cargo, esses percentuais caem para 6,3% entre os homens e 5,1% entre as mulheres. No caso das candidaturas a deputado estadual, o perfil racial faz com que a ocupação de advogada/o caia para a terceira posição entre as mulheres negras. A advocacia foi declarada por 3,7% do grupo, atrás da segunda ocupação (dona de casa), declarada por 4,1% das candidatas negras às assembleias. Entre as mulheres brancas candidatas ao mesmo cargo, advocacia segue em segundo lugar e dona de casa cai para a sexta posição.

As ocupações de candidatos e candidatas estão estreitamente ligadas ao modo como as desigualdades atingem essas mulheres na sociedade, de modo interseccional. No caso das mulheres negras, o que sabemos sobre sua inserção nas relações sociais – maiores taxas de desemprego, maior incidência de chefia familiar monoparental, menores salários e escolarização inferior a de homens e mulheres brancas – aqui se revela, em alguma medida, ao compararmos o perfil ocupacional. 

Outro dado que mostra as diferenças de atividade ocupacional por gênero, também com distinção entre mulheres negras e brancas, é a ocupação de professor/a. Entre os homens candidatos a deputado federal, a profissão de professor não aparece entre as dez mais citadas e, quando aparece, tem maior concentração no nível superior (13ª posição). Já entre as mulheres candidatas ao mesmo cargo, a docência, além de estar entre as dez ocupações mais citadas, predomina no ensino fundamental (7º lugar) e não no superior (21ª posição). No entanto, se verificarmos apenas os homens e mulheres negros no mesmo cargo, o quadro se altera. Para eles, prevalece o vínculo com o ensino médio (15º lugar); para elas, com o ensino fundamental (6º lugar). Entre as mulheres brancas que também são candidatas à Câmara dos Deputados, a docência que se destaca é a de nível ensino superior, em 13º lugar. 

Ainda sobre as ocupações vinculadas ao setor educacional, chama a atenção o lugar que a categoria estudante/bolsista/estagiária/assemelhados está no ranking entre mulheres negras. Não há muita diferença quando consideramos os dados somados de pretas e pardas, ou seja, de candidatas negras a deputada estadual e federal, perfazendo a 6ª e a 5ª posição, respectivamente. No entanto, quando destrinchados os dados entre as pleiteantes à Câmara dos Deputados, as estudantes são a 7ª ocupação entre as pretas e a 16ª entre as pardas. Tal expressividade pode sugerir que as mulheres pretas que acessaram as universidades nos últimos anos – via ações afirmativas, por exemplo – tendem a se interessar ativamente pela construção de políticas públicas a fim de alterar a naturalização de desigualdades sociopolíticas. Entre os homens negros candidatos à Câmara dos Deputados, essa ocupação aparece apenas na 20ª posição.

Enfermagem e assistência social – duas ocupações voltadas ao cuidado e à atenção, portanto socialmente vinculadas à feminilidade – aparecem nas 14ª e 16ª posições entre as mulheres que concorrem para deputada federal. Para as pleiteantes brancas, essas ocupações estão nos 11º (enfermeira) e 21º (assistente social) lugares. Para as mulheres pretas, essas ocupações figuram nas 18ª (assistente social) e 23ª (enfermeira) posições, o que se inverte no caso das mulheres pardas. 

Abaixo, apresentamos dois gráficos com as dez principais ocupações de candidatas/os a deputado estadual e a deputado federal, sempre por gênero e raça.

Fonte: As autoras, a partir de dados TSE (21/08/2022)

 

Fonte: As autoras, a partir de dados TSE (21/08/2022)

O resultado das urnas revelará quem estará presente e ausente nas esferas de decisão, ou seja, como as desproporcionalidades das candidaturas se traduzirão em cadeiras. A adoção de medidas como as cotas de gênero sobre as candidaturas e o financiamento pode colaborar para diminuir o abismo entre homens e mulheres, mas está longe de ser uma solução, já que estamos falando de desvantagens cumulativas. 

Negras e negros têm dificuldades históricas de romper com barreiras sociopolíticas e se projetar na política institucional porque partem de adversidades estruturais e encontram pouco incentivo na legislação eleitoral brasileira ou respaldo dos partidos. Na corrida de obstáculos que vai de se candidatar a eleger-se e conseguir manter uma carreira política, têm tido mais sucesso as e os que pertencem às classes sociais privilegiadas socioeconomicamente, que correspondem em larga medida às ocupações de candidatos e candidatas brancas, como mostrado (empresárias/os, advogadas/os, comerciantes, políticas/os profissionais etc.). Corridas eleitorais são disputas rasas para alguns e maratonas para outros. Não é casual a predominância de homens brancos e proprietários nas casas legislativas brasileiras. 

 

Viviane Gonçalves Freitas é professora no Departamento de Ciência Política da UFMG. Doutora em Ciência Política (UnB). Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG). Coordenadora e cofundadora do GT Mídia, Gênero e Raça (Compolítica).

Flávia Biroli é doutora em História pela Unicamp (2003). É professora do Instituto de Ciência Política da UnB, pesquisadora do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2018-20). É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018) e Gênero, neoconservadorismo e democracia (com Maria das Dores C. Machado e Juan Vaggione, Boitempo, 2020).

Pedro Paulo de Assis é doutor em ciência política pela UFSCar. Pesquisador do Centro de Estudos em Partidos Políticos da UFSCar e coordenador do projeto OddsPointer.