No esforço de manter a dianteira após o primeiro turno, a campanha de Lula mudou a estratégia com relação a um dos pontos sensíveis da eleição: a relação entre valores, religião e política. O Observatório das Eleições tem acompanhado postagens de atores ligados às duas campanhas nas redes sociais, onde essa mudança é bastante clara. 

 

Até o início de outubro, postagens no Twitter relacionadas ao tema da religião representavam 18% do total de publicações dos perfis bolsonaristas acompanhados. Entre os atores do campo lulista, não passavam de 10%. No período de 3 a 20 de outubro, no entanto, essa porcentagem sobe para 20%, superando a do campo bolsonarista. No YouTube vemos dados similares: a comparação entre os temas dos vídeos publicados no primeiro e no segundo turno mostra que religião foi o tema que mais cresceu entre atores do campo lulista.

 

A mudança da estratégia petista vai além de simplesmente falar mais sobre o tema, no entanto. A ampliação das menções à religião pode ser entendida a partir de dois movimentos distintos. Primeiro, a contraofensiva, desencadeada em boa medida por fora dos perfis oficiais da campanha, que associa Bolsonaro à maçonaria, à intolerância religiosa e até ao satanismo, virando assim a mesa da narrativa bolsonarista. Em paralelo, há também um movimento de aproximação a setores religiosos, em especial evangélicos, cujo maior símbolo é uma carta divulgada no dia 19 de outubro. 

Logo no início do segundo turno, vídeos sobre Bolsonaro e a maçonaria repercutiram tanto entre apoiadores de Lula, como entre atores do outro campo. O episódio foi um raro momento da campanha em que o campo progressista obrigou o adversário a defender-se sobre um tema que envolvia religião. E foi o primeiro de vários que se sucederam.

 

A partir da semana do 12 de outubro, vídeos feitos por apoiadores de Lula circularam amplamente, mostrando fiéis bolsonaristas indignados, interrompendo, aos gritos, missas do dia de Nossa Senhora Aparecida, hostilizando outros fiéis ou questionando homilias. Um desses vídeos mostra, por exemplo, a reação à menção a Marielle Franco  por um padre. Aos berros, duas mulheres interrompem a missa para dizer que o padre não poderia mencionar o nome de uma homossexual. Também bradam notícias falsas sobre Marielle, já fartamente desmentidas. Uma internauta comentou “mais uma apoiadora de Bolsonaro interrompendo uma missa e hostilizando o padre. Eles querem destruir a Igreja Católica”. É o feitiço voltando-se contra o feiticeiro, porque até então a única narrativa anti-Igreja era uma narrativa anti-Lula. 

 

Um olhar detalhado para o conteúdo das mensagens ratifica a mudança. Algumas das que foram mais reencaminhadas antes do primeiro turno tendiam a questionar a aproximação entre evangélicos e Bolsonaro, com textos como: “saudade quando os evangélicos queriam que a gente aceitasse Jesus e não o Bolsonaro”. No segundo turno, as mais retuitadas no campo de atores acompanhado pelo Observatório das Eleições são de ataque e de construção de contra-narrativas: “EITA! Vídeo de Bolsonaro na maçonaria vem à tona. A sociedade discreta tem como membros Carla Zambelli, Jorginho Mello (…)”. E, ainda: “se Lula ganhar, Igrejas NÃO serão fechadas. Se Bolsonaro continuar, Universidades SERÃO fechadas.”

 

Neste segundo movimento, pela primeira vez nesta campanha, viu-se o campo lulista demonstrar sua força no campo das discussões morais, ou religiosas.

Além disso – e esse é um aspecto que foi menos comentado -, ficou visível a existência de divisões ideológicas também entre os católicos. Há tempos sabemos que evangélicos, católicos e outros grupos religiosos são internamente heterogêneos e que também têm muitas divergências entre si. Isso, porém, vinha passando ao largo dos debates eleitorais de 2022. Texto de cientistas políticos publicado recentemente no Nexo apontava para isso ao discutir possibilidades de diálogo da campanha petista com evangélicos. Desde a fundação do PT, também se sabe que o partido tem raízes nos setores progressistas da Igreja Católica. 

 

Menos do que uma contraposição entre uma ou outra religião, é o conjunto de valores no interior de cada uma delas que está em disputa. E o PT, para se manter na liderança, precisa superar a percepção construída durante a campanha de que pode ser ameaça aos valores conservadores. Daí o segundo movimento.

 

A divulgação da “Carta Pública ao Povo Evangélico” em 19 de outubro abre mais um capítulo dos esforços petistas para angariar apoios entre cristãos, ou pelo menos neutralizar o discurso bolsonarista. No primeiro turno já houve, como se sabe, aproximação com lideranças evangélicas e a preparação de materiais de campanha voltados especificamente a este público. Até ali, a principal tendência era disputar interpretações de textos bíblicos – a disputa entre armas e amor, autodefesa e o valor da vida, por exemplo.

 

Comparada com alguns desses materiais, nos quais a questão dos direitos e do papel do Estado para garantir direitos era o tom central, a nova carta faz um movimento mais intenso de aproximação das pautas conservadoras. Primeiro, reafirma o compromisso com a liberdade de culto e de religião, depois posiciona-se diretamente sobre questões de valores com ênfase nas famílias e jovens. Menciona políticas públicas apenas na parte final do texto, e também ali a ênfase é no lar: a casa para a família, com referência ao programa Minha Casa Minha Vida.

Desloca-se o foco da atuação do Estado na proteção das populações mais vulneráveis para a  possibilidade de cada pessoa – ou família – “adquirir necessários e suficientes meios para viver dignamente por seu trabalho, sem ter que depender da ajuda do Estado”. Há aí uma visível mudança de tom.

 

Detectar esses movimentos, porém, não significa dizer que terão impactos nas urnas. Aliás, essa segunda virada pode complicar a vida dos petistas com seus apoiadores de primeira hora, em caso de eleição, mas a campanha parece confiar que a ampliação do espaço para outras pautas não vai minar a adesão de seus apoiadores mais estáveis.

 

Do outro lado, a campanha bolsonarista precisou pela primeira vez atuar reativamente no campo dos valores, sem deixar de apostar suas fichas na mobilização da pauta conservadora. A questão, agora, é qual dos dois conjuntos vai convencer os poucos indecisos e os muitos ausentes a tomar partido. 

Marisa von Bülow é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e doutora em ciência política pela Universidade Johns Hopkins (EUA). Suas publicações tratam do tema do ativismo digital, das estratégias digitais eleitorais e das relações entre sociedade e Estado. 

 

Priscila Delgado de Carvalho é pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Inova Juntos) e pesquisadora do INCT-IDDC (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação). Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).